TRADIÇÃO, CIÊNCIA DO POVO[1]
Margarida
de Souza Neves[2]
Verbete a ser publicado no livro SILVA, Marcos (org).
Dicionário Bibliográfico de Câmara Cascudo, no prelo.
Quando publicou o livro
Tradição, ciência do povo, Luis da Câmara Cascudo havia
completado 72 anos. Já era então o etnógrafo respeitado e reconhecido
internacionalmente, o grande folclorista brasileiro, glória intelectual
norte-riograndense. Em Natal, porto seguro que nunca quis abandonar, era
já o monumento-vivo que do casarão em que vivia da Ladeira que hoje leva
seu nome, como um viajante peculiar, dedicava-se incessantemente a
redescobrir o Brasil pelos roteiros da etnografia e do folclore.
Tradição, ciência do povo é um livro de maturidade, e não
apenas pela idade e renome de seu autor ao publicá-lo, em 1971. É obra
de escritor experiente sobretudo porque o livro reúne e sintetiza
algumas das facetas mais significativas de seu autor, tanto pelos temas
que aborda quanto pelo método de trabalho que nele explicita e põe em
prática; tanto pela erudição impressionante que evidencia, quanto pelos
conceitos com que opera; tanto pelo estilo todo seu da escrita quanto
pelo caráter enciclopédico da maioria dos artigos reunidos no livro.
Livro composto a modo de uma sinfonia, os oito ensaios que o conformam
são, como nas composições sinfônicas, precedidos por uma abertura,
breve mas significativa. Nela o tema principal, retomado com variações
em cada um de seus oito movimentos, aparece com clareza, e é assim
explicitado pelo autor:
“A Memória é a Imaginação do Povo, mantida comunicável pela Tradição,
movimentando as Culturas, convergidas para o Uso, através do Tempo.
Essas Culturas constituem quase a Civilização nos grupos humanos. Mas
existe um patrimônio de observações que se tornam Normas. Normas fixadas
no Costume, interpretando a Mentalidade popular. (...) Não lhe sentimos
a poderosa e onímoda influência como não percebemos a pressão
atmosférica em função normal. Nem provocam atenção porque vivem no
habitualismo quotidiano” P. 9.
É também nas duas páginas da “Introdução” que Cascudo define o
método de trabalho presente em cada um dos capítulos e em tantos de seus
outros trabalhos. Seu método parte da centralidade da noção de
convivência, entendida como a síntese daquilo que no prólogo de sua
obra maior, o monumental Dicionário do Folclore Brasileiro
publicado em 1954, explicita como o protocolo de seu ofício, pelo
cumprimento do que entende serem as três fases do trabalho folclórico e
etnográfico, “colheita, confronto e pesquisa de origem” , ou
seja, a escuta atenta dos informantes, o registro rigoroso das
diferentes versões e a busca das origens entendidas como linhagem e
constância cultural.
Para Cascudo, é a experiência vivida no sertão que legitima e sustenta seu
trabalho. O sertão nordestino, “cenário de infância e juventude”
(p.30) é considerado o lugar de seu verdadeiro aprendizado, uma vez que
“a dura escola do Sertão ensina aos seus filhos num curso universitário
vitalício.” (p. 53). Por atribuir tal importância ao
aprendizado pela experiência sertaneja e à coleta das vozes populares,
Cascudo pode afirmar que no livro “falará o brasileiro dos sertões,
cidades-velhas, e praias, sem constrangimento e disfarce” (p.10),
pressupondo uma impossível neutralidade na autoria. Esse pressuposto
traz um corolário: para ele, não haverá incoerência entre a erudição
evidenciada pelas numerosíssimas referências a leituras de clássicos da
etnografia e folcloristas contemporâneos nacionais ou estrangeiros;
fontes literárias das mais diversas escolas e latitudes,; historiadores
e cientistas sociais; médicos e cientistas; cronistas, viajantes e
memorialistas e a declaração de que o livro é escrito de forma a
privilegiar “não bibliotecas, mas convivência” (p.10).
Método e tese central reaparecerão, com variações determinadas pelos temas
tratados, em cada um dos movimentos desse livro sinfônico.
O primeiro ensaio, “Notícias das chuvas e ventos do Brasil” (pp. 11
a 27), recolhe ditos, tradições, superstições, provérbios e costumes
brasileiros sobre chuvas e ventos. O segundo, “Meteorologia
tradicional do sertão” (Pp. 28 a 54), analisa as tradições
sertanejas sobre nuvens, tempestades, nevoeriros, arco-iris, remoinhos,
fogos-fátuos, estrelas cadentes e previsão de chuvas, deixando
transparecer a importância desses fenômenos para aquela terra em que a
seca faz da água o bem mais preciado. A primeira frase deste ensaio
merece atenção particular: “ O Povo guarda e defende sua Ciência
Tradicional, secular patrimônio onde há elementos de todas as idades e
paragens do Mundo” (P. 29). Nela Cascudo oferece ao
leitor uma pista preciosa para entender uma das claves de seu pensamento
sobre a cultura popular no que, para ele, representa a superação das
limitações de tempo e espaço. O terceiro capítulo, “Botânica
supersticiosa no Brasil” (pp 55 a 83) registra o significado e a
simbologia atribuídos pelo povo às plantas.
O quarto texto, intitulado “Respingando a ceifa” (pp. 85 a 92),
parece simplesmente acrescentar um adendo em que o autor complementa
alguns aspectos referentes aos temas tratados nos três ensaios
anteriores. Representa algo próximo a um “intermezzo”
, na linguagem musical utilizada como metáfora expressiva do livro.
Em “O morto brasileiro” (pp. 93 a 105), quinto ensaio a compor o
livro, Cascudo recolhe expressões, práticas e costumes sobre a morte e
os mortos no Brasil. Também nesse estudo o autor volta a afirmar o
argumento da cultura como locus de sedimentação, no presente, de tempos
imemoriais ao afirmar que “Nós, mentalmente, continuamos. Somos uma
seqüência, embora haja quem se julgue inicial. Nada do que existe,
culturalmente, é contemporâneo. Flores de raízes milenárias” (p.
103).
O sexto capítulo, “Folclore do Mar Solitário” (pp. 107 a 115),
procura justificar a hipótese de que essa é uma das “zonas brancas”
(p. 107) do mapa do conhecimento etnográfico brasileiro, dado o pequeno
número de análises sobre as tradições do mar e a cultura dos homens que
dele vivem. O sétimo ensaio, “Os quatro elementos” (pp 117 a 144)
, estuda as tradições populares relativas à terra, à água, ao ar e ao
fogo, sustentando que, para o povo, “todo o elemento que possuir
forma definida, limites no espaço, ação percebível [sic],
características de permanência foi feito por Deus, tendo vontade,
consciência e autonomia” (p. 117).
Por fim, o oitavo ensaio, já publicado com o título de Voz de Nessus
em 1966 pela Universidade Federal da Paraíba, e intitulado “Para o
estudo da superstição” (pp. 145 a 195), difere dos demais por sua
natureza e funciona como o movimento final do livro-sinfonia, capaz de
revelar ao leitor a força dos motivos que sustentam cada fragmento da
composição. É o mais alentado e revelador dos estudos contidos no livro,
e nele Cascudo procura definir as condições de contorno para o estudo da
superstição no quadro maior do folclore, trazendo elementos teóricos,
metodológicos e material empírico sobre superstições no Brasil.
Nesse oitavo estudo, em primeiro lugar, é possível encontrar pistas sobre
a história do livro no conjunto de sua obra, porque data com exatidão o
momento em que o interesse pela cultura popular se condensa. Como quem
faz memória de sua trajetória intelectual, confidencia que “em 1918
apaixonei-me pela cultura popular, vivendo-a, procurando-a e amando-a”
(p. 149). Pouco depois da confidência reveladora, situa em outra obra
sua a origem do estudo publicado em 1966, que se desdobrará no livro de
1971:
“para os ‘antecedentes’, entre 1921 e 1929, há registo [sic] nos
Vaqueiros e Cantadores (Porto Alegre, 1939). Alí vereis, divertido
[sic], as antiguidades teimosas da minha simpatia supersticiosa, na
inicial trôpega.” (p. 149).
E, completando a arqueologia dessa sua obra, dá razão da escolha temática
que a particulariza:
“O Povo, como as crianças e os `videntes` , têm a coexistência com o
Impossível, para nós. O incrível é uma fronteira na ignorância
assimiladora. A imaginação popular é memória viva das Ciências
aposentadas pela Notoriedade”. (p. 118)
Em segundo lugar, é nesse ensaio que o autor situa-se no debate, candente
desde a década de 50, que envolve a construção do folclore como campo
intelectual no Brasil. Propõe um curso de Cultura Popular no último ano
do colegial, capaz de, “pelo apelo ao raciocínio” , “dar
combate ao dragão do tesouro imemorial”
(p183) da superstição, ambígua personificação de nossos medos ancestrais
que é simultaneamente “tesouro” - porque veículo de tradições
imemoriais – e “dragão” – porque, sem as luzes da razão, é apenas
crendice estéril -. E relativiza a oposição entre cultura letrada e
cultura popular,
“(...) obstinadas paralelas inflexíveis, Pólux Universitário, Castor
folclórico, imortais Dióscorus com lumes na testa: estrêla de livro,
estrêla da conversa do povo, ad imortalitatem.” ( p. 182).
É ainda nesse último ensaio que, com maior precisão. define superstição
como “sobrevivência de cultos desaparecidos” (p. 150), “uma
técnica de caráter defensivo, no plano mágico” (p. 152) e estabelece
a relação entre as práticas supersticiosas, a tradição e a cultura:
“a superstição é um fundamento da Cultura Popular, conservadora,
defensiva da morfologia, concentrativa, impermeabilizante. Movimenta-se
no plano da atualização mobilizadora. De superstitio passa a ser
traditionis, entregar, tradere, transmitir. Não teria existência se não
possuísse movimentação. “ (p. 176).
Como acorde final do livro-sinfonia, Cascudo retoma uma de suas teses mais
caras, a da interpretação do Brasil e dos brasileiros como uma química
que hierarquiza e qualifica a influência das três raças conformadoras do
que somos.
“nós brasileiros, somos representantes, biologicamente resignados, de
povos de alto patrimônio supersticioso. (...) O nosso alicerce consta de
amerabas, portuguêses e africanos. (...)” (p. 156)
“Todas essas memórias ficaram vivas nas reminiscências brasileiras, nos
giros e volteios da ebulição mental, presenças ativas na química de
todos os pavores coletivos” (p. 157)
“A influência mais penetrante e profunda é a européia, via portugueses.
Fornece o ácido para a prévia dissolução assimiladora e o conduto
plástico para a incessante movimentação.” (...) “Na ordem quantitativa
segue-se a sussurrada pelas vozes escravas, numa interminável
conrtaminação do medo hereditário.” (...)” A menor percentagem é a do
indígena, dono da casa que não tinha mobília para acomodar,
suficientemente, um sistema de superstições circulantes.” (pp. 157 e
158)
“Com essas três fontes, não unitárias e homogêneas, mas vértices de
ângulos com bases de extensão imprevisível, criou-se a superstição
brasileira” (p. 158)
Ao terminar a leitura do livro-sinfonia, se atentarmos para o início de
sua abertura, encontraremos a clave que permite a sintonia de todo o
livro e fornece o diapasão do conjunto da obra folclórica de Camara
Cascudo, a tradição, entendida como ciência do povo, é caracterizada
pela permanência, por ser quase intangível pela história e por remeter,
através de cada manifestação particular, ao Universal e ao atemporal
sempre buscados na cultura do povo que, para ele, “repercute,
inalterável, a sonoridade das vozes avoengas” (p. 119)
:“Essas observações fixam imagens sem idade, resultados de longos e
obscuros processos de raciocínio, critérios-soluções, herdadas,
inderfomáveis, e reproduzidas íntegras, ante o automóvel e o avião.
Comunicações sobre os fenômenos meteorológicos e a visão do Mundo
natural numa recepção fiel a si mesmo. E gestos, frases, que perderam
explicações e resistem na velocidade anterior, quase sem os atritos do
Tempo” . (p. 10)
Rio de
Janeiro, dezembro de 1999
Margarida de Souza Neves
[1]
Luis da CAMARA CASCUDO: Tradição, ciência do povo. São Paulo,
Editora Perspectiva, 1971.
[2] Margarida de Souza Neves é
doutora em História e professora do Departamento de História da PUC-Rio.
Atualmente desenvolve, com o apoio do CNPq um Projeto de Integrado de
Pesquisa sobre Luis da Câmara Cascudo. O projeto integra o grupo PRONEX
sediado na PUC-Rio e intitulado “Os limites do moderno no Brasil”.
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