Como Sísifo, os brasileiros parecem estar condenados a uma tarefa recorrente:
a busca de sua própria identidade
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Pelos tempos afora, tal empreitada é associada à repetição daquele que é apresentado como o momento inicial de nossa constituição: o descobrimento do Brasil. Conhecer o Brasil é obra de e para descobridores.

Como tradição ou como projeção, gerações de descobridores do Brasil empreendem a tarefa de identificar as raízes do Brasil ou de sublinhar o mote Brasil país do futuro. Estas duas claves, a da busca de uma tradição ou da sua anulação ao formular uma projeção, permitem distinguir duas linhagens intelectuais na história social de nossa cultura.

A primeira destas linhagens não cessa de buscar, por diferentes caminhos e movida por motivações as mais diversas, descobrir o sertão. Como viajantes ou como missionários, literatos, religiosos, historiadores, militares, políticos e cientistas empreendem recorrentemente esta rota para um descobrimento do Brasil. Sua busca procura estabelecer os contornos e o relevo desta terra ignota. Para muitos o sertão não é senão um imenso vazio, a designação sendo a forma contrata de desertão. Para alguns letrados, no entanto, descobrir o sertão é conhecer aquilo que, no dizer de Guimarães Rosa, está em toda parte. 

Contrapõem-se a esta uma segunda linhagem: a dos herdeiros daqueles a quem Frei Vicente de Salvador acusara de insistirem em permanecer arranhando ao longo do mar, como caranguejos. A cidade, corte imperial, capital federal ou metrópole aparece para os letrados deste conjunto como o espaço por excelência da construção do que somos. É a partir da cidade que esta identidade se estenderia ao país como um todo, civilizando os que Euclides da Cunha chama de nossos rudes patrícios. Para esses, a questão da identidade também se apresenta, mas como tarefa e projeto sempre inalcançado, que tantas vezes justifica os males do presente em nome das esperanças do futuro.

A distinção entre estas duas linhagens intelectuais pode estar centrada na forma pela qual cada uma delas concebe o tempo e, conseqüentemente, a possibilidade de atuar na história.

Para os que pertencem ao primeiro conjunto, é no passado, entendido como tradição, que se encontra a chave que permite formular uma possibilidade de construir um futuro que integre e potencie uma história e uma cultura genuinamente brasileiras. Daí sua preocupação em conhecer - para integrar - aquilo e aqueles que aparecem excluídos quer da arena política formal quer do cenário cultural reconhecido. Por isso se apresentam como viajantes, por vezes por efetivamente peregrinar, no sentido físico do termo, em busca do Brasil e dos brasileiros, ou por vezes por empreender uma viagem metafórica na qual o tempo - em particular o tempo passado - é o território a ser percorrido nesta mesma busca.

Para a segunda linhagem, o passado deve ser negado. Porque entendido quase sempre como atraso colonial, nele estão fincadas as raízes dos nossos males. Cumpre, portanto, fazer tábula rasa do passado ou, quando muito, mantê-lo presente na memória como elemento de contraste que permita valorizar ainda mais um futuro utópico no qual, pela aceleração do tempo, seja possível encontrar o que é a razão de ser do projeto que acalentam: equiparar o Brasil às nações vistas como modernas, seus valores e sua cultura. Voltados para o futuro, procuram no presente criar condições de possibilidade para a construção do que parecem antever. Seu objetivo é, sobretudo, projetar, inventar, criar à imagem e semelhança de modelos percebidos como mais evoluídos: também eles viajantes, empreendem um caminho que os leva a um outro descobrimento, quase às avessas: aquele que quer encontrar a identidade do Brasil na sua capacidade de equiparar-se com a cultura e os valores europeus ou com a capacidade de empreendimento norte-americana.

Como complemento necessário à distinção acima enunciada entre as duas linhagens de letrados brasileiros, cumpre também relacionar estas duas tradições, não apenas porque seus representantes dialogam constantemente entre si, mas também porque as duas perspectivas podem conviver numa mesma produção intelectual.

No momento em que o Brasil, após as comemorações dos quinhentos anos do seu descobrimento, enfrenta as discussões sobre a nossa modernidade e sobre os limites do moderno, é que se afirma a relevância de retornar a alguns daqueles descobridores. O que se pretende com este projeto é por em evidência alguns descobridores deste vasto sertão Capistrano de Abreu, Mário de Andrade, Cecília Meireles, Monteiro Lobato e Luís da Câmara Cascudo.

As descobertas de cada um deles são a razão de tomarmos suas obras hoje como monumentos, uma vez que permanecemos empenhados em associar memória e identidade como elementos igualmente imprescindíveis para a incorporação dos muitos sertões. Porque trazer para o presente a utopia é forjar um outro espaço de luta e de vida.

 

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