FACULDADE DE MEDICINA DA BAHIA
Margarida de Souza Neves
No coração do centro histórico de Salvador, o Terreiro de
Jesus (foto 1), próximo ao Pelourinho, pode revelar ao visitante
muito da história da cidade e da lógica da sociedade colonial.
Nela, vizinho da Sé, um grande prédio hoje de um rosa desbotado
e sempre em restauração
(fotos 2, 3 e 4) divide a praça com a Catedral, com a Igreja de
São Pedro dos Clérigos e com a Igreja de São Domingos, a dois
passos da Igreja do Rosário dos Pretos que reina no
Pelourinho, da Igreja de Sant’Ana, da Igreja da Ordem Terceira
de São Francisco e da igreja recoberta de ouro do Convento
de São Francisco.

Foto 1 - Terreiro de Jesus (Foto Margarida de
Souza Neves – dezembro de 2005)
 |
Foto 2 - A Sé
Catedral e parte do edifício da Faculdade de Medicina da
Bahia, em restauração
(Foto Margarida de Souza Neves –
dezembro de 2005) |

Foto 3 - A Faculdade de Medicina da Bahia (Foto
Margarida de Souza Neves – dezembro de 2005)

Foto 4 - A Faculdade de Medicina da Bahia e a
Igreja de São Pedro dos Clérigos (Foto Margarida de Souza Neves
– dezembro de 2005)
A seu modo, o imenso prédio rosa é também um templo. Essa
analogia não passou desapercebida ao Vice Presidente do
Instituto Bahiano de História da Medicina e Ciências Afins,
professor Antonio Carlos Nogueira Britto, que assim concluiu a
conferência que fez no Anfiteatro Alfredo Britto no dia 18 de
fevereiro de 2003, por ocasião da comemoração dos 195 anos de
Ensino Médico na Bahia:
Atentai, ó vós que estais a pisar este
chão.
Este chão é sagrado.
Este chão, este solo, esta terra são
ungidos, são consagrados, são abençoados pelos deuses da
Medicina.
Este é o chão do Santuário da Medicina
primaz do Brasil.[1]
Os trabalhos da memória fizeram do edifício do
Terreiro de Jesus um templo do saber médico e da ciência no
Brasil. Ali, antes da expulsão dos jesuítas de Portugal e suas
colônias, ficava o Colégio da Companhia de Jesus e nele, já
transformado em Hospital Real Militar da Bahia, instalou-se por
Decisão Régia de 18 de fevereiro de 1808 a Escola de Cirurgia da
Bahia, primeira escola médica do Brasil. Em 1816 se
transformaria na Academia
Médico-Cirúrgica da Bahia para tornar-se, em 1832, a Faculdade
de Medicina da Bahia, em 1891 a Faculdade de Medicina e Farmácia
da Bahia, voltar a ser em 1901 a Faculdade de Medicina da Bahia
(fotos 5, 6, 7 e 8)
e,
quando as Universidades passaram a aglutinar as faculdades
isoladas, tornou-se a Faculdade de Medicina da Universidade da
Bahia, em 1946, até chegar a hospedar, em 1965, algumas
dependências da Faculdade de
Medicina da Universidade Federal da Bahia.
De forma análoga às igrejas com quem dialoga no
Terreiro de Jesus, o velho prédio que a cidade se acostumou a
ver como a Faculdade de Medicina da Bahia, por mais que a
Faculdade ocupe novas instalações no Canela desde 1918,
transformado em Memorial da Medicina, abriga hoje como
abrigou em outros tempos relíquias da história da medicina na
Bahia e no Brasil (fotos 9, 10,
11, 12, 13, 14, 15 e 16), imagens dos grandes vultos da
medicina baiana (fotos 17, 18, 19, 20 e 21), o sancta
sanctorum da elite médica baiana (fotos 22 e 23)
e alguns dos suportes físicos que serviram aos rituais
acadêmicos de outrora (fotos 24, 25 e 26).

Foto 9 - Diploma de Médico de Pedro Dias da Silva
– 1881 – Acervo do Memorial de Medicina

Foto 10 - Mesa de trabalho do Dr. Adolpho Diniz
Gonçalves – Memorial da Medicina
(Foto Margarida de Souza Neves – dezembro de 2005)

Foto 11 - Quadros de formandos da Escola Médica
da Bahia de 1903 – Acervo do Memorial de Medicina

Foto 12 - Quadros de formandos da Escola Médica
da Bahia: farmacêuticos de 1930

Foto 13 - Quadros de formandos da Escola Médica
da Bahia: médicos de 1939

Foto 14 - Representação da medicina: o médico em
luta com a morte para salvar uma paciente.
Detalhe do quadro de formandos de 1930. Acervo do Memorial da
Medicina.
sem
data
1903
sem
data
Fotos 15a, 15b e 15c - Emblemas da medicina. Detalhes de quadros
de formandos. Acervo do Memorial da Medicina.

Foto 16 - Gradil da antiga portaria da Faculdade de Medicina da
Bahia. (Foto Margarida de Souza Neves – dezembro de 2005)

Foto 17 - Faculdade de Medicina da Bahia - Figuras eminentes da
Medicina no jardim próximo ao anfiteatro Alfredo Britto.
(Foto Margarida de Souza Neves – dezembro de 2005)

Foto 18 - Faculdade de Medicina da Bahia –
Juliano Moreira.
(Foto Margarida de Souza Neves – dezembro de 2005)


Fotos 19 e 20 - Diretores da Faculdade de
Medicina da Bahia – óleo sobre tela
Acervo do Memorial de Medicina

Foto 21 - Fotografias de médicos formados pela
Faculdade de Medicina da Bahia
Acervo do Memorial da Medicina


Fotos 22 e 23 - Sala da Congregação da Faculdade
de Medicina da Bahia

Foto 24 - A porta da Sala dos Lentes na Faculdade
de Medicina da Bahia.
(Foto Margarida de Souza Neves – dezembro de 2005)

Foto 25 - Faculdade de Medicina da Bahia. Ao
fundo, a porta da Sala dos Lentes.
(Foto Margarida de Souza Neves – dezembro de 2005)

Foto 26 - A cátedra. Sala da congregação da
Escola de Medicina da Bahia.
(Foto Margarida de Souza Neves – dezembro de 2005)
Ainda hoje alguns desses rituais ali se celebram,
quer porque ali se realizem as sessões solenes da Academia de
Medicina da Bahia (foto 27), quer porque desde março de 2004 o
prédio voltasse a abrigar a diretoria e a secretaria geral da
Faculdade de Medicina da Bahia e os programas de extensão por
ela organizados, quer ainda porque, a cada mês de dezembro, as
turmas de médicos que comemoram o aniversário de sua formatura
percorram, reverentes como em uma procissão, seus corredores
(foto 28) e salões após a missa festiva na Sé.

Foto 27 - A Academia de Medicina da Bahia. (Foto
Margarida de Souza Neves – dezembro de 2005)

Foto 28 - Corredores da Faculdade de Medicina da
Bahia.
(Foto Margarida de Souza Neves – dezembro de 2005)
Lugar de memória da medicina, do saber médico e do prestígio
social dos médicos na sociedade brasileira, na sua arquitetura
atual, resultado da reconstrução feita após o incêndio de 1905,
emula, por um lado, os templos clássicos com suas inumeráveis
colunas dóricas e jônicas (foto 29) e, por outro, as absides das
igrejas cristãs na rotunda onde se instalou o anfiteatro (foto
30). Seu mobiliário (fotos 31 e 32), seus ornamentos
(foto 33) e os objetos que guarda (foto 34) permitem que o
visitante vislumbre fragmentos do passado de glória do lugar que
se vê e é visto como o berço da medicina no Brasil. Sua
monumentalização no imaginário da cidade de Salvador e naquele
dos cientistas do Brasil revestiram o velho prédio da função de
lugar fundacional e de toda a carga simbólica que costuma a
acompanhar esses espaços. Por isso é o Memorial da
Medicina, sem uma especificação que o remeta à cidade de
Salvador ou mesmo à Bahia: é, por excelência, o Memorial da
Medicina no Brasil.



Fotos 29a, 29b e 29c - Faculdade de Medicina da
Bahia - colunas
(Foto Margarida de Souza Neves – dezembro de 2005)

Foto 30a - Faculdade de Medicina da Bahia –
Interior do Anfiteatro Alfredo Britto. (www.medicina/ufba/br)

Foto 30b - Faculdade de Medicina da Bahia –
Rotunda do Anfiteatro Alfredo Britto.
(Foto Margarida de Souza Neves – dezembro de 2005)

Foto 31 - Conversadeira e estante com documentos
- Faculdade de Medicina da Bahia
(Foto Margarida de Souza Neves – dezembro de 2005)

Foto 32 - Sala de acesso à Congregação –
Faculdade de Medicina da Bahia

Foto 33 - Insígnia da Medicina esculpida na porta
da Sala dos Lentes. Faculdade de Medicina da Bahia.
(Foto Margarida de Souza Neves – dezembro de 2005)

Foto 34 - Objetos científicos. Acervo do Dr. Adolpho Diniz
Gonçalves – Faculdade de Medicina da Bahia.
(Foto Margarida de Souza Neves – dezembro de 2005)
O Memorial abriga ainda um Arquivo (foto 35), que conserva um
material precioso, composto, sobretudo, de teses defendidas
desde o século XIX (foto 36), de matrículas dos alunos,
cadernetas, atas de concursos, e atas das sessões da Congregação
da Escola Médica. Nele, os funcionários atendem os
pesquisadores com uma disponibilidade que vai muito além do
profissional e com uma cordialidade que é marca de identidade
dos baianos.

Foto 35 - Sala de consulta do arquivo da
Faculdade de Medicina da Bahia.
(Foto Margarida de Souza Neves – dezembro de 2005)



Foto 36 - Arquivo do Memorial da Medicina. Teses
Médicas.
(Foto Margarida de Souza Neves – dezembro de 2005)
Ainda que de forma menos perceptível ao visitante, o prédio rosa
de hoje é também um lugar de memória do descaso para com
a ciência no Brasil (foto 37). Esse descaso se manifestou
tragicamente quando, na noite do dia 2 de março de 1905, um
incêndio que poderia ter sido controlado, segundo a imprensa da
época, caso os bombeiros tivessem sido mais eficientes e melhor
aparelhados, destruiu completamente a Biblioteca e
algumas dependências da Faculdade, inclusive o Gabinete de
Medicina Legal dirigido por Nina Rodrigues. Perderam-se
então os 22.000 volumes da mais preciosa Biblioteca Médica do
país. Foi assim também em outubro de 1951, quando outro
incêndio destruiu o pavilhão da frente da Faculdade de Medicina
da Bahia. E, se os dois incêndios podem ser tidos como
fatalidades, o mesmo não se pode dizer do que a incúria permitiu
que sucedesse, em nossos dias, com a biblioteca
reconstituída depois do incêndio de 1905 graças às doações
feitas por professores, por particulares e por instituições.


Foto 37 - Faculdade de Medicina da Bahia.
(Foto Margarida de Souza Neves – dezembro de 2005)
Abandonada, a Biblioteca (fotos 38 e 39) viu seu telhado ruir, o
mobiliário perder-se pela ação da chuva bem como uma parte
significativa dos livros, alguns deles muito antigos. Como
tantas vezes acontece, depois do desastre consumado, foram
tomadas providências e um investimento significativo foi
destinado à restauração do que ainda possa ser recuperado.
Uma pequena equipe de bibliotecários, restauradores e
estagiários dedica-se a essa tarefa, em salas sem ventilação, e
– ao menos até dezembro de 2005 - sem os equipamentos
necessários para um
trabalho profissional sério. Quando da recente visita de
um Ministro de Estado às obras de restauração, em lugar de expor
as reais necessidades de equipamentos e de pessoal
especializado, o que foi mostrado foram os livros já
higienizados e recuperados, mas não o subterrâneo irrespirável
onde se amontoam milhares de livros ou o galpão vizinho a uma
carpintaria, de portas abertas para um pátio interno por onde
circula quem quiser e com as vidraças das janelas quebradas,
repleto de livros, teses, periódicos científicos e de sacos e
mais sacos de lixo com livros irrecuperáveis, alguns deles
preciosos, fossilizados pela ação da chuva e do calor na antiga
biblioteca ou carcomidos pelas traças.


Fotos 38 e 39 - A antiga biblioteca da Faculdade
de Medicina da Bahia.
(Fotos Margarida de Souza Neves – dezembro de 2005)
Mais grave ainda: a monumentalização do velho edifício rosa que
um dia abrigou a Faculdade de Medicina da Bahia e a
grandiosidade de seus salões e corredores fez com que suas
dependências se tornassem um ponto cobiçado para grandes festas
da capital baiana. No dia em que visitei os trabalhos de
restauração dos livros, em dezembro de 2005, preparava-se ali
uma grande festa de casamento. Na parede que separava uma
das salas vazias daquela que guarda, sem climatização, os livros
já recuperados e higienizados, alinhavam-se nove botijões de
gás, conectados a fogões onde seriam preparados os pratos que,
mais tarde, seriam servidos na festa. E não é difícil
imaginar que, no dia seguinte a uma dessas festas, restos de
comida sejam encontrados dentro da sala dos livros salvos.
Esperemos que não tenhamos de lamentar outro desastre. E,
se não for demais, esperemos também que o projeto de recuperação
do que restou da biblioteca não adormeça ao ritmo da burocracia
do serviço público. As paredes do casarão do Terreiro de
Jesus não guardam apenas relíquias mortas da história da
medicina e da ciência no Brasil. Os livros, as teses
médicas, os manuais e os periódicos científicos que um dia
estiveram na Biblioteca não guardam apenas informações que
interessam aos eruditos: são parte substancial da identidade da
ciência no Brasil, porque são memória viva, e como tal deveriam
ser cuidados.
- Antonio Carlos
Nogueira BRITTO. 195 anos de Ensino Médico na Bahia.
IN
www.medicina/ufba/br consultado
em 30 de dezembro de 2005.
Nos muros da antiga faculdade de Medicina
da Bahia o trecho foi reproduzido em bronze.
