A epilepsia na literatura não ficcional

Meu Marido Dostoievski. Anna Grigorievna Dostoievskaia

“Os fanáticos de João do Valle”. Luís da Câmara Cascudo

DOSTOIEVSKAIA, Anna Grigorievna. Meu Marido Dostoievski. 2ª ed. Rio de Janeiro: Mauad, 1999

 

Por volta de 1916, aos setenta anos, Anna Grigorievna Dostoievskaia, esposa de Fiodor Mikhailovitch Dostoievski, depois de sua morte, resolveu escrever uma biografia do autor na qual priorizou os momentos do casal após o seu casamento. Ela começa a narrativa pela sua infância e juventude. Ao longo do livro, Anna Grigorievna conta aspectos e situações do cotidiano familiar e profissional, que, no caso do autor, se misturavam; traça o seu perfil, como ela ouvira falar dele antes de conhecê-lo e como constatou ser depois de alguns contatos pessoais.

Talvez por nunca ter escrito nada antes dessa obra, Anna certamente não tem a brilhante escrita de Dostoievski e admite isso duas vezes na introdução do livro. Na mesma introdução, a autora fala de sua obra: “Não posso garantir que minhas recordações sejam divertidas, porém, com certeza, são verdadeiras e imparciais ao descrever as atitudes de algumas pessoas [...]” (p.15) Ela, portanto, pretende escrever um relato de caráter autobiográfico, centrado na figura do marido, como indica o próprio título, imparcial por ser baseado em anotações, cartas, artigos de jornais e revistas. Sabemos que não é possível escrever memórias e mesmo trabalhos historiográficos neutros, ainda que sejam baseados em documentos históricos e guiados por muita pesquisa. Portanto, apesar do que Anna Grigorievna sugere, é preciso ler o livro tendo em mente esse horizonte.

O livro é dividido em períodos da vida, primeiramente da vida de solteira da autora e posteriormente da sua vida junto a Fiodor Mikhailovitch, que seguem uma cronologia rígida cuja pauta é o passar de cada ano.. A partir dessas datas, vai se desenhando o caminho de Dostoievski para o reconhecimento público e a escrita evidencia seu caráter carinhoso e atencioso como marido e como pai. O processo de escrita de diversos livros, a inspiração para a construção de diversas de suas personagens tal como ficaram gravados na memória de Anna Grigorievna e como aparecem em suas anotações da época constitui outra das claves do texto.

A pessoa que indicou Anna Grigorievna para trabalhar como estenógrafa para Dostoievski a avisou de que ele era conhecido por ser um homem “severo e sorumbático”. (p.38) Mas, no primeiro contato que ela tem com ele, percebe que ele não é nada aquilo que se falava sobre sua pessoa: “À primeira vista, Dostoievski pareceu-me bastante velho. Mas foi só começar a falar, que se tornou mais jovem [...]” (p.40). Ainda que a então futura esposa não dê nenhuma indicação direta sobre isso, podemos interpretar essa imagem sorumbática sobre o já relativamente conhecido autor como um preconceito da sociedade de São Petersburgo, que atribui ao escritor um caráter sombrio por ter epilepsia.

A autora narra, no decorrer do livro, como a vida de Dostoievski é difícil. Permeada por dívidas, prazos de entrega de livros, morte de dois filhos e duras críticas a suas obras, o sofrimento do autor ainda tem um sério agravante: a epilepsia. A síndrome é mencionada pouco mais de 30 vezes nas páginas do livro, e essas passagens podem ser interpretadas de modos diferentes. Mas uma coisa é fato: todas as vezes que ele tem crises, isso tem um forte significado e provoca imensas preocupações à esposa. A primeira vez que ela menciona a epilepsia é logo no primeiro encontro dos dois: “Logo nas primeiras frases, declarou que sofria de epilepsia e que há poucos dias tivera um ataque – essa sinceridade me surpreendeu.” (p.41) Essa passagem tem dois elementos importantes: o fato dele, no começo da conversa com ela logo informar que tem epilepsia, como que para evitar surpresas. E, na mesma frase, não é possível saber ao certo se ela ou se ele mesmo, declaram que ele “sofre” de epilepsia. Já nesse trecho é possível perceber que traço marcará toda a narrativa da autora sobre as crises de Dostoievski, elas se apresentarão como um fardo, o que é bastante comum, dados os préconceitos que cercavam e cercam a doença.

Fiodor Mikhailovitch é muito estigmatizado e julgado pelos problemas que enfrenta e pela doença que tem. A mãe de Anna Grigorievna não queria aceitar que ela se apaixonasse por ele: “Não vale a pena você ficar tão apaixonada por Dostoievski. Teus sonhos com ele não poderão ser realizados, e, graças a Deus, que não podem, já que ele é tão doente, com tantas preocupações com familiares e tão endividado!”, dizia a mãe à filha. (p.57) E ele próprio faz isso consigo mesmo; num dado momento, quando ele vai pedi-la em casamento, ele começa a improvisar um romance em que ele próprio e Anna são representados como um pintor e sua amada.

“Em seu novo romance, descrevia a dura infância, a perda precoce do querido pai, as fatídicas circunstâncias (grave doença) que afastaram o pintor por dezenas de anos da vida e da arte. [...] Para descrever seu herói, Fiodor Mikhailovitch não economizou tintas sombrias.” (p.61)

Por essa passagem, podemos perceber que não só a sociedade russa o estigmatizava, mas que ele mesmo incorporou os preconceitos, que aparecem na sua auto-estima muito baixa por conta da doença, apresentada aqui como “fatídicas circunstâncias” e no aspecto sombrio, que novamente é elemento de caracterização do doente com epilepsia. E, para responder à pergunta do pretendente sobre seu personagem, Anna diz: “Tem um coração maravilhoso. Imagine só quanta desgraça teve que suportar e como as superou resignadamente!” (p.61) Mais uma vez, um substantivo pesado é usado para nomear tudo pelo que ele passou, inclusive a epilepsia: “desgraça”. E a única possibilidade que se apresenta a ele é aceitar essas desgraças resignadamente.

A conversa sobre a união das duas personagens continua, e ele diz que acha que a moça não aceitaria casar-se com o pintor por ele ser “velho, doente, endividado”. E Anna responde: “E daí que ele é doente e pobre? Será que amamos somente pela aparência e riqueza? E onde está o sacrifício dela? Se o ama, então, será feliz também e nunca irá se arrepender.” (p.62) Nesse pequeno trecho, ela declara que não se impediria de passar o resto dos seus dias com o amado pelas “desgraças” que marcam sua vida, mas se refere a isso como um “sacrifício”. E quando ela usa essa palavra, mostra “as terríveis dificuldades” que se apresentam a ela naquele momento e que se colocarão entre eles no futuro, como a “horrível doença” do marido. Tudo isso apesar da felicidade que ela declara ter vivido nos anos de casamento. Dentre as dificuldades da vida conjunta entra “aquela condescendência necessária em cada bom casamento, principalmente no casamento com um homem doente e irritadiço, que era freqüentemente, devido a sua doença, Fiodor Mikhailovitch.” (p.71)

Os aborrecimentos da vida do autor são ligados diretamente, em várias passagens, às crises de epilepsia; e, ao contrário, os momentos de alegria e animação são relacionados a tréguas da doença. A bebida é associada às crises também. Logo depois do casamento, várias visitas levavam o casal a brindar com champanhe. E numa dessas ocasiões Anna teve a “primeira grande dor na vida de casada”:

“Fiodor Mikhailovitch estava bastante animado e contava algo interessante à minha irmã. De repente, ele interrompeu sua fala na metade da palavra, ficou pálido, levantou-se do sofá e inclinou-se para o meu lado. Assustada, olhei para o seu rosto desfigurado. Em seguida ouvimos um grito, ou melhor, um berro horroroso e sobre-humano, e Fiodor Mikhailovitch começou a cair. Ao mesmo tempo escutamos um forte grito de minha irmã, que estava ao lado de meu marido. [...] Segurei com firmeza os ombros de Fiodor Mikhailovitch e tentei sentá-lo de novo no sofá. Mas como era horrível! Por mais que tentasse acomodá-lo, seu corpo sem sentidos caía, e me faltavam forças para segurá-lo. [...] Aos poucos as convulsões cessaram, e Fiodor Mikhailovitch recuperou os sentidos. Porém, no início, ele não sabia onde estava e perdeu até a fala [...] para minha enorme infelicidade, o ataque se repetiu novamente, uma hora depois do primeiro, e com tal força que Fiodor Mokhailovitch, mesmo depois de duas horas e já consciente, gritava de dor. Isso foi algo terrível! [...] Que noite apavorante foi aquela! Ali, percebi pela primeira vez a doença assustadora da qual sofria Fiodor Mikhailovitch. Ouvindo seus gritos e gemidos incessantes durante horas, olhando seu rosto irreconhecível, deformado pela dor, sem entender sua fala confusa, quase me convenci de que meu querido e amado marido estava enlouquecendo. Só de pensar assim, ficava aterrorizada. [...] ‘Parece que perdi o ser mais precioso do mundo, enterrei alguém – é assim que me sinto’ – definia sempre Fiodor Mikhailovitch seu estado após cada crise de epilepsia. Esse dia ficou em mim como uma péssima recordação.” (p.91)

Essa é a descrição de crise mais forte que aparece em todo o livro. Nela, a autora narra detalhes dos momentos de uma crise dupla de epilepsia e a sua narrativa é permeada de exclamações de horror muito significativas do quão terrível aquela situação foi para ela, para a sua irmã, que estava presente, e para Dostoievski, que compara o momento posterior a ela com a perda de um ente querido, tamanho o sofrimento. E os médicos associam essa crise dupla ao álcool do champanhe que estavam tomando.

Numa situação posterior, num momento de extremo ciúme da esposa, Fiodor Mikhailovitch perde a compostura e briga muito com Anna. Sobre esse dia, ela narra: “Seus gritos e a expressão horrível de seu rosto me assustaram. Comecei a achar que Fiodor Mikhailovitch, naquele instante, teria um ataque de epilepsia ou iria me matar.” (p.105) Nesse trecho de suas memórias, Anna associa a expressão do marido anterior a uma crise com a expressão de quem pretende cometer um assassinato. Ainda que ela não faça a associação direta e imediata entre um e outro, devido ao conhecimento que se tem sobre uma corrente de médicos que a fazia, ela pode ser significativa e expressar um preconceito da sociedade presente na própria esposa do doente.

Na visão de sua mulher, a epilepsia é a chave da vida do autor, e uma chave que parece, sempre, fechar portas. As crises freqüentes de epilepsia atrapalhavam a fluidez do trabalho do autor, por exemplo, quando a esposa estava em trabalho de parto, ele não pôde ajudá-la, pois não havia se recuperado de uma crise e isso causou sérias complicações ao parto; em vários momentos, Anna achava que o marido estava na iminência de uma crise, e isso a incomodava com freqüência: “Além das preocupações com Lília, um outro pensamento não saía de minha cabeça: onde estaria agora meu marido e se não estava tendo um ataque.” (pp.185) Mesmo nos momentos de maior alegria, lá estava a doença, aumentando a felicidade por sua ausência. O segundo filho do casal morre ao ter convulsões, e Fiodor Mikhailovitch se culpa por isso, por acreditar que o menino morreu de epilepsia, herdada dele. O fato da epilepsia afetar a memória do autor o fez criar muitos inimigos na sociedade russa, pois ele freqüentemente esquecia dos rostos das pessoas, que acreditavam que ele fazia aquilo por arrogância. Um amigo de Fiodor Mikhailovitch, N. A. Nekrasov, escreveu um poema não por acaso chamado “Infelizes” sobre ele, o que é muito expressivo da imagem que os outros tinham da figura do autor.

Há, no livro, um momento em que a epilepsia se torna algo menor e em que ela, e as crises violentas que acometiam o escritor, teriam sido um mal menor. Quando o irmão de Anna Grigorievna vai visitá-los em Petersburgo, “teria lido em algum jornal sobre os problemas de saúde de Fiodor Mikhailovitch, mas não deu à notícia a devida importância, supondo que acontecera a Fiodor Mikhailovitch, como de costume, um ataque duplo de epilepsia. [...] Ele largou o sobretudo e se dirigiu rapidamente ao escritório, onde no sofá ainda permanecia e esfriava lentamente o corpo de Fiodor Mikhailovitch.” (p.308).

 

Aline dell’Orto Carvalho
Bolsista de IC

Setembro de 2008

 


 

CASCUDO, Luís da Câmara.  “Os fanáticos de João do Valle.”  IN  Histórias que o tempo leva... São Paulo: Monteiro Lobato & Co, 1924.  pp. 205 a 215.

 

         Luís da Câmara Cascudo é autor de muitos livros sobre cultura popular, história, folclore, etnografia, é cronista de produção jornalística impressionante e figura de proa da cultura e da vida do Rio Grande do Norte, onde nasceu, em Natal, no ano de 1898 e morreu em 1986.

          O livro Histórias que o tempo leva... é obra de juventude, e sua primeira publicação como historiador.  Prefaciado por Rocha Pombo, o livro reúne 20 textos sobre episódios e figuras do Rio Grande do Norte.

         O texto aqui transcrito trata de um movimento liderado pelo beato Joaquim Ramalho no sertão do Rio Grande do Norte na última década do século XIX e dizimado, em nome do governo do estado, pelo próprio pai de Câmara Cascudo, o então tenente Francisco Justino de Oliveira Cascudo, que foi seu informante sobre o episódio e é a quem o texto está dedicado pelo autor.

Do ponto de vista da obra de Câmara Cascudo, o interesse do texto reside no fato de registrar um movimento popular praticamente desconhecido e porque, nele, Cascudo dá foros de cidadania, nos domínios da história, a relatos orais, aos que confere status de documento histórico, o que é sem dúvida um procedimento ousado e pouco canônico para a época.

Do ponto de vista de uma história social da epilepsia o interesse da narrativa é grande, uma vez que a descrição do líder do movimento como um epilético se apropria, com requintes, dos preconceitos da ciência e da época em relação à doença. 

Cabe lembrar que Cascudo foi estudante de medicina no Rio de Janeiro de 1918 a 1922, ainda que não tenha concluído o curso, pois a situação financeira precária de seu pai obrigou-o a voltar para Natal.  Foi aluno, amigo e correspondente de Afrânio Peixoto, de quem deixou um perfil interessante no qual cita a tese Epilepsia e Crime, no livro Gente Viva (Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 1970) 

Sua biblioteca, conservada hoje no Memorial Câmara Cascudo, em Natal, é tão rica e variada quanto o foram seus múltiplos interesses.  Nela guarda um exemplar da tese de conclusão do curso de medicina do doutor José Gomes da Maia Monteiro, apresentada na Faculdade de Medicina da Bahia em 1908, e que leva por título Phisio-psychologia mórbida dos grandes homens. O exemplar, com uma dedicatória do autor datada de 1920 e que denuncia que Cascudo havia pedido ao doutor baiano o envio do trabalho, está fartamente anotada com a caligrafia cuidada e a tinta preta de todas as suas anotações de final dos anos 10 e início dos anos 20.  Com elas, escreve na margem direita da página 59, trecho em que o Dr. Maia Monteiro trata de alucinações visuais, um comentário curioso sobre o argumento da associação entre genialidade e loucura que a tese defendia: 

“hallucinações vistas são usuais a todos os santos.  Thereza de Jesus era epilética e está no céu.  Que me proteja e livre-me de ser gênio.”

A sombra da tese do Dr. Maia Monteiro é perceptível no último parágrafo da narrativa sobre Os fanáticos de João do Valle, e a relevância do texto para o estudo dos preconceitos em relação à epilepsia, para a associação desta doença física ao que era considerado desordem social, e para a história de conceitos tais como os de degenerscência e raça inferior, próprios do pensamento social e da ciência praticada na virada do século XIX para o século XX e ainda presentes neste texto de Câmara Cascudo escrito em 1924, justifica sua transcrição na íntegra. 

A única alteração introduzida é a atualização ortográfica.

  

Os fanáticos de João do Valle
(séc. XIX)

 Para Francisco Cascudo,
meu Pai.

Todas as crenças ingênuas, do fetichismo bárbaro às aberrações católicas, todas as tendências impulsivas das raças inferiores, livremente exercidas na indisciplina da vida sertaneja, se condensam no seu misticismo extravagante.

Euclides da Cunha.  Sertões. pag. 150.

A Serra do Doutor, antes dos espigões paralelos e do “Alto da Lancinha”, distende um contraforte que vem se alongando através dos municípios de Currais Novos, Sant’Ana de Martos e Flores. No Estreito, abruptamente cortada, a serra se ergue adiante, maciça e alta, com o nome de João do Valle. Daí em diante, Acãuam, depois em gradações sucessivas, vem baixando para os chapadões batidos de vermelho de São Sebastião.

A serra de João do Valle tem habitantes e plantios.  Lavourinhas distendem-se vagarosamente pelo dorso compassivo do monstro.  Casitas, cochicholos, baiúcas, lugarejos sem nome, arruados desconhecidos crescem assustadoramente numa expansão de força viva da terra fecunda.  Raro é, todavia, a casa de tijolo.  Quem vier pela serra, galgando as encostas pedregosas e difíceis, em caminhando pelo planalto, encontra, pela calma do meio dia, morada de tijolo, caiada a branco, atarracada e baixa, circundada de alpendres, latadas, armazéns, vendo perto os currais de pau-a-pique, chiqueiros de miúças e casa de farinha – pare e peça descanso, que o dono é “arremediado”.

Justamente no cimo da serra morava em 1890 Joaquim Ramalho.  Era agricultor.  Neto e filho de plantadores e vaqueiros, era vaqueiro e plantador.  A herança do saque à terra era direito de primogenitura que um prato de lentilhas não comprava.  Seu pai era homem forte e sadio.  Joaquim era fraco, doente, neurastênico, epilético, tendo convulsões em menino, fácies dechaica, olhar morto e paranóico.

Alto, magro, pálido, cabelos negros, olhos cinzentos, falando aos tartamudeios, cheio de pinchos, tiques e macacoas.  Ramalho era um homem física e moralmente doente sem ter adoecido.  Sofria, inconsciente, o prazer boêmio dos antepassados.  Espírito supersticioso, atribulado, mórbido, vivia em orações contínuas, numa crendice bárbara de agouros, rezando e temente a tudo, cultor de astrologia do Lunário Perpétuo.

Uma a uma as células nervosas iam-se-lhe hiperestesiando, sobrecarregando, fremindo em loucura, em desatinos, em arremessos de touro bravio, o cérebro desequilibrado do neto dos vaqueiros ousados.

Chegou 1899.  Ano de contraste.  Até fevereiro a seca esbocelou as ribas dos rios, rechaçou o plantio, estringiu os campos, levou a ramagem verde dos joazeiros, esperdiçou o gado, assustou o sertanejo.  De fevereiro em diante o inverno desceu.  A água ensopou a terra, empapaçou os morros, cantou pelos rios que desciam, espalhou nas represas, fulgiu nos barrancos, parou nas ipueiras.  Inundações lavaram, de ponta a ponta, os caminhos.  A fome voltou, e com ela, o delírio das rezas fortes, das loucuras fanáticas, a ciência negra dos esconjuros.

No alto da serra de João do Valle, Joaquim Ramalho orava e enlouquecia.  Uma tarde, no terreiro da fazenda, passeando, rosnou surdamente, gorgulhou vômitos, careteou náuseas, e caiu de borco, bruscamente. A família acudiu.  Veio toda a gente apanhá-lo quando, no chão, com os olhos abertos, o rosto contraído, o corpo crispado numa convulsão, Joaquim Ramalho começou a cantar.   Em volta, inconscientemente, os presentes descobriram-se, ouvindo no silêncio da tarde o canto misterioso do doente.  Era uma ladainha monótona, fraca, pausada pelos resfôlegos ansiados, cheio de pavor, de receio, o medo atávico das raças inferioresVoltando a si, espantado, o homem nada se recordava Negou que tivesse cantado e, no outro dia, à mesma hora, caiu e cantou o miserere.

A notícia alastrou-se como um relâmpago.  De todas as tocaias da serra, homens e mulheres correram a ver o prodígio.  Vieram presentes.  Vieram adeptos.

Em abril, Joaquim Ramalho era o senhor em trinta léguas derredor.

Nos intervalos dos ataques, explicava que o cantor não era ele e sim o vigário velho.  O vigário velho era o padre Manuel Bezerra Cavalcante, vigário colado de Campo Grande (hoje Augusto Severo) durante cinqüenta anos.  Fora vaqueiro.  Era padrinho de toda a gente nas cercanias.  Era bom, simples, forte, solidamente religioso, espantosamente analfabeto.  Ramalho dizia que era a voz do velho pároco quem surgia pedindo ou perdoando no ritmo das litanias sacras.

Dia e noite, ladainhas, responsos, novenas, terços, uma infinidade de exercícios religiosos, abalavam a quietude pacata daqueles lugares ermos.  Os padres nas paróquias vizinhas não os incomodavam.  Semanalmente um “fanático” ia encomendar missas e mais missas.

Agora já não era somente Ramalho.  Havia o negro Sabino, caolho sinistro, esgalgado, cínico, cheio de esgares histeriformes, palrador impressionante, alma complexa de bandido e de ingênuo.  Todos os dias, ora num, ora noutro, cantavam adormecidos os desejos do velho e santo pároco.  Ganharam terreno.  Desceram por toda a zona do Paraú.  Agora, em certos dias, com velas acesas, vagarosamente, a multidão descia para terços e novenários em lugarejos vizinhos, cantando benditos.  Os presentes eram inúmeros.  Vendiam a roupa do corpo para uma oferta.  Fazendeiros poderosos, cangaceiros afoitos, vaqueiros destemidos, ajoelhavam, rezando, batendo no peito, olhos baixos quando, estático e absorto em contemplações superiores, Joaquim Ramalho passava, abençoando-os. 

À tarde era o mesmo rito impressionante e macabro.  Na sala repleta de fiéis, Sabino ou Ramalho, vagaroso, todo pálido, resfolegando, se deixava cair na esteira coberta de linho branco, altar de um culto bárbaro num povo bárbaro. Orava. Ia aos poucos resvalando numa dormência.  De repente estrebuchava, se estorcia, uivando, bramindo, espumando. Depois imobilizava-se.  Neste estado, era analgésico.  Quase numa catalepsia, não se podia sentir o ritmo das pulsações.  As velas acesas davam uma cor lívida de câmara mortuária.  No silêncio, a um sinal, lentamente, emergindo da sombra, pausado e grave, o canto coral subia aos céus, em espirais de alfazema incensada.

Senhor Deus, nós pedimos a glória,

Santa Maria, rogai a Deus por nós.

Respondia o coro num esto bravio de crença e de delírio:

Santa Maria, rogai a Deus por nós.

Quase sempre, hirto, imóvel, sinistro, Joaquim Ramalho entreabria os lábios ciciando, numa dolência mórbida do aboio:

Os passos de Cristo eu não perco mais,

Misericórdia dos céus, socorrei a nós.

A multidão, chorando, convulsa, desvairada, bramia numa grande onda sonora:

Santa Maria, rogai a Deus por nós.

.    .    .    .    .    .    .    .    .    .    .    .    .    .    .    .    .   

Era Governador do Estado o desembargador Joaquim Ferreira Chaves, secretário, Alberto Maranhão, chefe de polícia, Dr. E. Autran, ajudante de ordens do governador, o tenente Francisco Justino de Oliveira Cascudo.  Foi este o escolhido para dispersar, na serra de João do Valle, o núcleo proteiforme de fanáticos

O tenente Oliveira Cascudo seguiu para Campo Grande (então Triunfo).  Requisitou os destacamentos dos lugarejos vizinhos.  Reuniu vinte e duas praças.  Num domingo de julho cercou e prendeu o primeiro grupo de fanáticos que se tinha aventurado a ir a Triunfo.  Pela tarde seguiu para a serra.  Chegou pela madrugada no sopé.  Ramalho e Sabino tinham ido em “santas missões” para Espírito Santo.  O oficial prendeu inúmeros.

Contava com o auxílio decidido do coronel Tito Jácome, uma bela figura de sertanejo inteligente.  Luiz Florêncio, um grande nome que o sertão respeita, e o Dr. Vicente Veras, homem de energia e de vontade.

A tropa chegou à tarde no Espírito Santo.  Cercou uma casinha onde Ramalho, imóvel numa esteira de carnaúba, salmodiava.  Preso, dispersos os ouvintes, custosos foram os esforços para retirarem o místico hierofante daquela atonia.  Dias depois os fiéis eram soltos.  Sabino contou que nada sentia.  Tudo era para ganhar a vida.  Ramalho nada disse.  Despreocupado, inerte, semi-inconsciente, aparentou uma insensibilidade superior.  Qual era o crime?  Nenhum quase.  Não pregava contra a República, como o velho Antonio Conselheiro, imperante bárbaro da Odisséia titânica de Canudos.  Foram livres.  Sabino desapareceu.  Misterioso, como sempre, envolveu-se no âmbito dos capoeirões ignorados, desaparecendo para sempre.  Ramalho voltou à serra.  Vinha vencido.  Ninguém o foi receber.  Nenhum dos seus numerosos adeptos o cortejaram.

Supunham-no superior a qualquer vicissitude humana.  Acima da lei, da força, da potência do Governo, representada nas tropas que marchavam, sertão em fora, batendo os cangaceiros.  A onipotência do mago transmudou-se em arte de histrião.  Foi desprezado.  Esqueceram-no.  Voltou para a sua serra, e lá ainda vive.

A “República”, no seu número 184, de 22 de agosto de 1899, comentou o caso dos fanáticos de João do Valle, elogiando a energia e a presteza máscula com que o tenente Oliveira Cascudo acometera e dispersara o bando.  Tudo depois foi olvidado, esquecido, apagado, ignorado.

Inculto mentor de inculta gente, degenerado inferior pela raça e pela cultura, Joaquim Ramalho não pode nem soube fazer lembrar à História, sustentando a sua idéia numa epopéia sangrenta como a que fulgurou nos barrancos fuscos do Vasa-Barris, nas pedras cinzentas da Favela, ou, antes, na loucura mística e terrífica do Reino da Pedra Encantada, página obscura de ouro e de lodo, nos sertões pernambucanos de 1835.

Vivendo no meio da força, não a quis empregar.  Quedou-se num esmorecimento tácito de derrota.

O mais é sabido.  Quanto, na sua degenerescência, impressionar e dirigir multidões é comum Sabemos, desde muito, que os agitadores, os mártires, os sábios, os guerreiros, os poetas, um por um, todos enfim, conservam no cérebro luminoso do gênio, a mancha indelével da loucura.

 

Margarida de Souza Neves
Coordenadora da equipe de pesquisa
2006


 

©Portinari

Uma História Social da Epilepsia
no Pensamento Médico Brasileiro

História - PUC-Rio