Por
volta de 1916, aos setenta anos, Anna Grigorievna
Dostoievskaia, esposa de Fiodor Mikhailovitch
Dostoievski, depois de sua morte, resolveu escrever uma
biografia do autor na qual priorizou os momentos do
casal após o seu casamento. Ela começa a narrativa pela
sua infância e juventude. Ao longo do livro, Anna
Grigorievna conta aspectos e situações do cotidiano
familiar e profissional, que, no caso do autor, se
misturavam; traça o seu perfil, como ela ouvira falar
dele antes de conhecê-lo e como constatou ser depois de
alguns contatos pessoais.
Talvez
por nunca ter escrito nada antes dessa obra, Anna
certamente não tem a brilhante escrita de Dostoievski e
admite isso duas vezes na introdução do livro. Na mesma
introdução, a autora fala de sua obra: “Não posso
garantir que minhas recordações sejam divertidas, porém,
com certeza, são verdadeiras e imparciais ao descrever
as atitudes de algumas pessoas [...]” (p.15) Ela,
portanto, pretende escrever um relato de caráter
autobiográfico, centrado na figura do marido, como
indica o próprio título, imparcial por ser baseado em
anotações, cartas, artigos de jornais e revistas.
Sabemos que não é possível escrever memórias e mesmo
trabalhos historiográficos neutros, ainda que sejam
baseados em documentos históricos e guiados por muita
pesquisa. Portanto, apesar do que Anna Grigorievna
sugere, é preciso ler o livro tendo em mente esse
horizonte.
O
livro é dividido em períodos da vida, primeiramente da
vida de solteira da autora e posteriormente da sua vida
junto a Fiodor Mikhailovitch, que seguem uma cronologia
rígida cuja pauta é o passar de cada ano.. A partir
dessas datas, vai se desenhando o caminho de Dostoievski
para o reconhecimento público e a escrita evidencia seu
caráter carinhoso e atencioso como marido e como pai. O
processo de escrita de diversos livros, a inspiração
para a construção de diversas de suas personagens tal
como ficaram gravados na memória de Anna Grigorievna e
como aparecem em suas anotações da época constitui outra
das claves do texto.
A
pessoa que indicou Anna Grigorievna para trabalhar como
estenógrafa para Dostoievski a avisou de que ele era
conhecido por ser um homem “severo e sorumbático”.
(p.38) Mas, no primeiro contato que ela tem com ele,
percebe que ele não é nada aquilo que se falava sobre
sua pessoa: “À primeira vista, Dostoievski pareceu-me
bastante velho. Mas foi só começar a falar, que se
tornou mais jovem [...]” (p.40). Ainda que a então
futura esposa não dê nenhuma indicação direta sobre
isso, podemos interpretar essa imagem sorumbática
sobre o já relativamente conhecido autor como um
preconceito da sociedade de São Petersburgo, que atribui
ao escritor um caráter sombrio por ter epilepsia.
A
autora narra, no decorrer do livro, como a vida de
Dostoievski é difícil. Permeada por dívidas, prazos de
entrega de livros, morte de dois filhos e duras críticas
a suas obras, o sofrimento do autor ainda tem um sério
agravante: a epilepsia. A síndrome é mencionada pouco
mais de 30 vezes nas páginas do livro, e essas passagens
podem ser interpretadas de modos diferentes. Mas uma
coisa é fato: todas as vezes que ele tem crises, isso
tem um forte significado e provoca imensas preocupações
à esposa. A primeira vez que ela menciona a epilepsia é
logo no primeiro encontro dos dois: “Logo
nas primeiras frases, declarou que sofria de epilepsia e
que há poucos dias tivera um ataque – essa sinceridade
me surpreendeu.” (p.41) Essa passagem tem dois
elementos importantes: o fato dele, no começo da
conversa com ela logo informar que tem epilepsia, como
que para evitar surpresas. E, na mesma frase, não é
possível saber ao certo se ela ou se ele mesmo, declaram
que ele “sofre” de epilepsia. Já nesse trecho é possível
perceber que traço marcará toda a narrativa da autora
sobre as crises de Dostoievski, elas se apresentarão
como um fardo, o que é bastante comum, dados os
préconceitos que cercavam e cercam a doença.
Fiodor
Mikhailovitch é muito estigmatizado e julgado pelos
problemas que enfrenta e pela doença que tem. A mãe de
Anna Grigorievna não queria aceitar que ela se
apaixonasse por ele: “Não vale a pena você ficar tão
apaixonada por Dostoievski. Teus sonhos com ele não
poderão ser realizados, e, graças a Deus, que não podem,
já que ele é tão doente, com tantas preocupações com
familiares e tão endividado!”, dizia a mãe à filha.
(p.57) E ele próprio faz isso consigo mesmo; num dado
momento, quando ele vai pedi-la em casamento, ele começa
a improvisar um romance em que ele próprio e Anna são
representados como um pintor e sua amada.
“Em
seu novo romance, descrevia a dura infância, a perda
precoce do querido pai, as
fatídicas circunstâncias (grave doença) que
afastaram o pintor por dezenas de anos da vida e da
arte. [...] Para descrever seu herói, Fiodor
Mikhailovitch não economizou tintas sombrias.” (p.61)
Por
essa passagem, podemos perceber que não só a sociedade
russa o estigmatizava, mas que ele mesmo incorporou os
preconceitos, que aparecem na sua auto-estima muito
baixa por conta da doença, apresentada aqui como
“fatídicas circunstâncias” e no aspecto sombrio, que
novamente é elemento de caracterização do doente com
epilepsia. E, para responder à pergunta do pretendente
sobre seu personagem, Anna diz: “Tem um coração
maravilhoso. Imagine só quanta desgraça teve que
suportar e como as superou resignadamente!” (p.61) Mais
uma vez, um substantivo pesado é usado para nomear tudo
pelo que ele passou, inclusive a epilepsia: “desgraça”.
E a única possibilidade que se apresenta a ele é aceitar
essas desgraças resignadamente.
A
conversa sobre a união das duas personagens continua, e
ele diz que acha que a moça não aceitaria casar-se com o
pintor por ele ser “velho, doente, endividado”. E Anna
responde: “E daí que ele é doente e pobre? Será que
amamos somente pela aparência e riqueza? E onde está o
sacrifício dela? Se o ama, então, será feliz também e
nunca irá se arrepender.” (p.62) Nesse pequeno trecho,
ela declara que não se impediria de passar o resto dos
seus dias com o amado pelas “desgraças” que marcam sua
vida, mas se refere a isso como um “sacrifício”. E
quando ela usa essa palavra, mostra “as terríveis
dificuldades” que se apresentam a ela naquele momento e
que se colocarão entre eles no futuro, como a “horrível
doença” do marido. Tudo isso apesar da felicidade
que ela declara ter vivido nos anos de casamento. Dentre
as dificuldades da vida conjunta entra “aquela
condescendência necessária em cada bom casamento,
principalmente no casamento com um homem doente e
irritadiço, que era freqüentemente, devido a sua doença,
Fiodor Mikhailovitch.” (p.71)
Os
aborrecimentos da vida do autor são ligados diretamente,
em várias passagens, às crises de epilepsia; e, ao
contrário, os momentos de alegria e animação são
relacionados a tréguas da doença. A bebida é associada
às crises também. Logo depois do casamento, várias
visitas levavam o casal a brindar com champanhe. E numa
dessas ocasiões Anna teve a “primeira grande dor na vida
de casada”:
“Fiodor Mikhailovitch estava bastante animado e contava
algo interessante à minha irmã. De repente, ele
interrompeu sua fala na metade da palavra,
ficou pálido, levantou-se do
sofá e inclinou-se para o meu lado. Assustada, olhei
para o seu rosto desfigurado. Em seguida ouvimos um
grito, ou melhor, um berro horroroso e sobre-humano, e
Fiodor Mikhailovitch começou a cair. Ao mesmo
tempo escutamos um forte grito de minha irmã, que estava
ao lado de meu marido. [...] Segurei com firmeza os
ombros de Fiodor Mikhailovitch e tentei sentá-lo de novo
no sofá. Mas como era horrível!
Por mais que tentasse acomodá-lo, seu corpo sem sentidos
caía, e me faltavam forças para segurá-lo. [...] Aos
poucos as convulsões cessaram, e Fiodor Mikhailovitch
recuperou os sentidos.
Porém, no início, ele não sabia onde estava e perdeu até
a fala [...] para minha enorme infelicidade, o ataque se
repetiu novamente, uma hora depois do primeiro, e com
tal força que Fiodor Mokhailovitch, mesmo depois de duas
horas e já consciente, gritava de dor. Isso foi algo
terrível! [...] Que noite apavorante foi aquela! Ali,
percebi pela primeira vez a doença assustadora da qual
sofria Fiodor Mikhailovitch. Ouvindo seus gritos e
gemidos incessantes durante horas, olhando seu rosto
irreconhecível, deformado pela dor, sem entender sua
fala confusa, quase me convenci de que meu querido e
amado marido estava enlouquecendo.
Só de pensar assim, ficava
aterrorizada. [...] ‘Parece que perdi o ser mais
precioso do mundo, enterrei alguém – é assim que me
sinto’ – definia sempre Fiodor Mikhailovitch seu estado
após cada crise de epilepsia. Esse dia ficou em mim como
uma péssima recordação.” (p.91)
Essa é a descrição de
crise mais forte que aparece em todo o livro. Nela, a
autora narra detalhes dos momentos de uma crise dupla de
epilepsia e a sua narrativa é permeada de exclamações de
horror muito significativas do quão terrível aquela
situação foi para ela, para a sua irmã, que estava
presente, e para Dostoievski, que compara o momento
posterior a ela com a perda de um ente querido, tamanho
o sofrimento. E os médicos associam essa crise dupla ao
álcool do champanhe que estavam tomando.
Numa situação
posterior, num momento de extremo ciúme da esposa,
Fiodor Mikhailovitch perde a compostura e briga muito
com Anna. Sobre esse dia, ela narra: “Seus gritos e a
expressão horrível de seu rosto me assustaram.
Comecei a achar que Fiodor
Mikhailovitch, naquele instante, teria um ataque de
epilepsia ou iria me matar.” (p.105) Nesse trecho
de suas memórias, Anna associa a expressão do marido
anterior a uma crise com a expressão de quem pretende
cometer um assassinato. Ainda que ela não faça a
associação direta e imediata entre um e outro, devido ao
conhecimento que se tem sobre uma corrente de médicos
que a fazia, ela pode ser significativa e expressar um
preconceito da sociedade presente na própria esposa do
doente.
Na visão de sua
mulher, a epilepsia é a chave da vida do autor, e uma
chave que parece, sempre, fechar portas. As crises
freqüentes de epilepsia atrapalhavam a fluidez do
trabalho do autor, por exemplo, quando a esposa estava
em trabalho de parto, ele não pôde ajudá-la, pois não
havia se recuperado de uma crise e isso causou sérias
complicações ao parto; em vários momentos, Anna achava
que o marido estava na iminência de uma crise, e isso a
incomodava com freqüência: “Além das preocupações com
Lília, um outro pensamento não saía de minha cabeça:
onde estaria agora meu marido e se não estava tendo um
ataque.” (pp.185) Mesmo nos momentos de maior alegria,
lá estava a doença, aumentando a felicidade por sua
ausência. O segundo filho do casal morre ao ter
convulsões, e Fiodor Mikhailovitch se culpa por isso,
por acreditar que o menino morreu de epilepsia, herdada
dele. O fato da epilepsia afetar a memória do autor o
fez criar muitos inimigos na sociedade russa, pois ele
freqüentemente esquecia dos rostos das pessoas, que
acreditavam que ele fazia aquilo por arrogância. Um
amigo de Fiodor Mikhailovitch, N. A. Nekrasov, escreveu
um poema não por acaso chamado “Infelizes” sobre ele, o
que é muito expressivo da imagem que os outros tinham da
figura do autor.
Há, no livro, um
momento em que a epilepsia se torna algo menor e em que
ela, e as crises violentas que acometiam o escritor,
teriam sido um mal menor. Quando o irmão de Anna
Grigorievna vai visitá-los em Petersburgo, “teria lido
em algum jornal sobre os problemas de saúde de Fiodor
Mikhailovitch, mas não deu à notícia a devida
importância, supondo que acontecera a Fiodor
Mikhailovitch, como de costume, um ataque duplo de
epilepsia. [...] Ele largou o sobretudo e se dirigiu
rapidamente ao escritório, onde no sofá ainda permanecia
e esfriava lentamente o corpo de Fiodor Mikhailovitch.”
(p.308).
Aline
dell’Orto Carvalho
Bolsista de IC
Setembro de 2008
|
Luís da Câmara Cascudo é
autor de muitos livros sobre cultura popular, história,
folclore, etnografia, é cronista de produção
jornalística impressionante e figura de proa da cultura
e da vida do Rio Grande do Norte, onde nasceu, em Natal,
no ano de 1898 e morreu em 1986.
O livro Histórias que o tempo leva... é obra de
juventude, e sua primeira publicação como historiador.
Prefaciado por Rocha Pombo, o livro reúne 20 textos
sobre episódios e figuras do Rio Grande do Norte.
O texto aqui transcrito trata
de um movimento liderado pelo beato Joaquim Ramalho no
sertão do Rio Grande do Norte na última década do século
XIX e dizimado, em nome do governo do estado, pelo
próprio pai de Câmara Cascudo, o então tenente Francisco
Justino de Oliveira Cascudo, que foi seu informante
sobre o episódio e é a quem o texto está dedicado pelo
autor.
Do ponto de vista da
obra de Câmara Cascudo, o interesse do texto reside no
fato de registrar um movimento popular praticamente
desconhecido e porque, nele, Cascudo dá foros de
cidadania, nos domínios da história, a relatos orais,
aos que confere status de documento histórico, o que é
sem dúvida um procedimento ousado e pouco canônico para
a época.
Do ponto de vista de
uma história social da epilepsia o interesse da
narrativa é grande, uma vez que a descrição do líder do
movimento como um epilético se apropria, com requintes,
dos preconceitos da ciência e da época em relação à
doença.
Cabe lembrar que Cascudo foi estudante de medicina no
Rio de Janeiro de 1918 a 1922, ainda que não tenha
concluído o curso, pois a situação financeira precária
de seu pai obrigou-o a voltar para Natal. Foi
aluno, amigo e correspondente de Afrânio Peixoto, de
quem deixou um perfil interessante no qual cita a tese
Epilepsia e Crime, no livro Gente Viva
(Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 1970).
Sua biblioteca, conservada hoje no Memorial Câmara
Cascudo, em Natal, é tão rica e variada quanto o foram
seus múltiplos interesses. Nela guarda um exemplar
da tese de conclusão do curso de medicina do doutor José
Gomes da Maia Monteiro, apresentada na Faculdade de
Medicina da Bahia em 1908, e que leva por título
Phisio-psychologia mórbida dos grandes homens. O
exemplar, com uma dedicatória do autor datada de 1920 e
que denuncia que Cascudo havia pedido ao doutor baiano o
envio do trabalho, está fartamente anotada com a
caligrafia cuidada e a tinta preta de todas as suas
anotações de final dos anos 10 e início dos anos 20.
Com elas, escreve na margem direita da página 59, trecho
em que o Dr. Maia Monteiro trata de alucinações visuais,
um comentário curioso sobre o argumento da associação
entre genialidade e loucura que a tese defendia:
“hallucinações vistas são usuais a
todos os santos.
Thereza de Jesus era epilética
e está no céu. Que me proteja e livre-me de
ser gênio.”
A sombra da tese do Dr.
Maia Monteiro é perceptível no último parágrafo da
narrativa sobre Os fanáticos de João do Valle, e
a relevância do texto para o estudo dos
preconceitos em relação à epilepsia, para a associação
desta doença física ao que era considerado desordem
social, e para a história de conceitos tais como os de
degenerscência e raça inferior, próprios do
pensamento social e da ciência praticada na virada do
século XIX para o século XX e ainda presentes neste
texto de Câmara Cascudo escrito em 1924, justifica sua
transcrição na íntegra.
A única alteração
introduzida é a atualização ortográfica.
Os fanáticos de João do Valle
(séc. XIX)
Para Francisco Cascudo,
meu Pai.
Todas as crenças ingênuas, do fetichismo bárbaro às aberrações católicas,
todas as tendências impulsivas das raças inferiores,
livremente exercidas na indisciplina da vida sertaneja,
se condensam no seu misticismo extravagante.
Euclides da Cunha.
Sertões. pag. 150.
A Serra do Doutor, antes
dos espigões paralelos e do “Alto da Lancinha”, distende
um contraforte que vem se alongando através dos
municípios de Currais Novos, Sant’Ana de Martos e
Flores. No Estreito, abruptamente cortada, a serra se
ergue adiante, maciça e alta, com o nome de João do
Valle. Daí em diante, Acãuam, depois em gradações
sucessivas, vem baixando para os chapadões batidos de
vermelho de São Sebastião.
A serra de João do Valle
tem habitantes e plantios. Lavourinhas
distendem-se vagarosamente pelo dorso compassivo do
monstro. Casitas, cochicholos, baiúcas, lugarejos
sem nome, arruados desconhecidos crescem
assustadoramente numa expansão de força viva da terra
fecunda. Raro é, todavia, a casa de tijolo.
Quem vier pela serra, galgando as encostas pedregosas e
difíceis, em caminhando pelo planalto, encontra, pela
calma do meio dia, morada de tijolo, caiada a branco,
atarracada e baixa, circundada de alpendres, latadas,
armazéns, vendo perto os currais de pau-a-pique,
chiqueiros de miúças e casa de farinha – pare e peça
descanso, que o dono é “arremediado”.
Justamente no cimo da serra morava em 1890 Joaquim
Ramalho. Era agricultor. Neto e filho de
plantadores e vaqueiros, era vaqueiro e plantador.
A herança do saque à terra era direito de primogenitura
que um prato de lentilhas não comprava. Seu pai
era homem forte e sadio.
Joaquim era fraco, doente, neurastênico, epilético,
tendo convulsões em menino, fácies dechaica, olhar morto
e paranóico.
Alto, magro, pálido,
cabelos negros, olhos cinzentos, falando aos
tartamudeios, cheio de pinchos, tiques e macacoas.
Ramalho era um homem física
e moralmente doente sem ter adoecido. Sofria,
inconsciente, o prazer boêmio dos antepassados.
Espírito supersticioso, atribulado, mórbido,
vivia em orações contínuas, numa crendice bárbara de
agouros, rezando e temente a tudo, cultor de astrologia
do Lunário Perpétuo.
Uma a uma as
células nervosas iam-se-lhe hiperestesiando,
sobrecarregando, fremindo em loucura, em desatinos, em
arremessos de touro bravio, o cérebro desequilibrado do
neto dos vaqueiros ousados.
Chegou 1899. Ano de contraste. Até fevereiro
a seca esbocelou as ribas dos rios, rechaçou o plantio,
estringiu os campos, levou a ramagem verde dos
joazeiros, esperdiçou o gado, assustou o sertanejo.
De fevereiro em diante o inverno desceu. A água
ensopou a terra, empapaçou os morros, cantou pelos rios
que desciam, espalhou nas represas, fulgiu nos
barrancos, parou nas ipueiras. Inundações lavaram,
de ponta a ponta, os caminhos. A fome voltou, e
com ela, o delírio das rezas fortes, das loucuras
fanáticas, a ciência negra dos esconjuros.
No alto da serra de João
do Valle, Joaquim Ramalho orava e enlouquecia.
Uma tarde, no terreiro da fazenda, passeando, rosnou
surdamente, gorgulhou vômitos, careteou náuseas, e caiu
de borco, bruscamente.
A família acudiu. Veio toda a gente apanhá-lo
quando,
no chão, com os olhos abertos, o rosto contraído, o
corpo crispado numa convulsão, Joaquim Ramalho começou a
cantar. Em volta,
inconscientemente, os presentes descobriram-se, ouvindo
no silêncio da tarde o canto misterioso do doente.
Era uma ladainha monótona, fraca,
pausada pelos resfôlegos ansiados,
cheio de pavor, de receio, o
medo atávico das raças inferiores. Voltando
a si, espantado, o homem nada se recordava.
Negou que tivesse cantado e, no outro dia, à mesma hora,
caiu e cantou o miserere.
A notícia alastrou-se
como um relâmpago. De todas as tocaias da serra,
homens e mulheres correram a ver o prodígio.
Vieram presentes. Vieram adeptos.
Em abril, Joaquim
Ramalho era o senhor em trinta léguas derredor.
Nos
intervalos dos ataques,
explicava que o cantor não era ele e sim o vigário
velho. O vigário velho era o padre Manuel Bezerra
Cavalcante, vigário colado de Campo Grande (hoje Augusto
Severo) durante cinqüenta anos. Fora vaqueiro.
Era padrinho de toda a gente nas cercanias. Era
bom, simples, forte, solidamente religioso,
espantosamente analfabeto. Ramalho dizia que era a
voz do velho pároco quem surgia pedindo ou perdoando no
ritmo das litanias sacras.
Dia e noite, ladainhas,
responsos, novenas, terços, uma infinidade de exercícios
religiosos, abalavam a quietude pacata daqueles lugares
ermos. Os padres nas paróquias vizinhas não os
incomodavam. Semanalmente um “fanático” ia
encomendar missas e mais missas.
Agora já não era somente
Ramalho. Havia
o negro Sabino, caolho
sinistro, esgalgado, cínico, cheio de esgares
histeriformes,
palrador impressionante, alma complexa de bandido e de
ingênuo. Todos os dias, ora num,
ora noutro, cantavam adormecidos os desejos do velho e
santo pároco. Ganharam terreno. Desceram por
toda a zona do Paraú. Agora, em certos dias, com
velas acesas, vagarosamente, a multidão descia para
terços e novenários em lugarejos vizinhos, cantando
benditos. Os presentes eram inúmeros.
Vendiam a roupa do corpo para uma oferta.
Fazendeiros poderosos, cangaceiros afoitos, vaqueiros
destemidos, ajoelhavam, rezando, batendo no peito, olhos
baixos quando, estático e absorto em contemplações
superiores, Joaquim Ramalho passava, abençoando-os.
À tarde era o mesmo rito
impressionante e macabro. Na sala repleta de
fiéis, Sabino ou Ramalho, vagaroso, todo pálido,
resfolegando, se deixava cair na esteira coberta de
linho branco, altar de um culto bárbaro num povo
bárbaro. Orava. Ia aos poucos resvalando numa
dormência. De repente estrebuchava, se estorcia,
uivando, bramindo, espumando. Depois
imobilizava-se. Neste estado, era analgésico.
Quase numa catalepsia, não se podia sentir o ritmo das
pulsações. As velas acesas davam uma cor
lívida de câmara mortuária. No silêncio, a um
sinal, lentamente, emergindo da sombra, pausado e grave,
o canto coral subia aos céus, em espirais de alfazema
incensada.
Senhor Deus, nós
pedimos a glória,
Santa Maria, rogai a
Deus por nós.
Respondia o coro num esto bravio de crença e de delírio:
Santa Maria, rogai a
Deus por nós.
Quase sempre,
hirto, imóvel, sinistro, Joaquim Ramalho entreabria os
lábios ciciando, numa dolência mórbida do
aboio:
Os passos de Cristo
eu não perco mais,
Misericórdia dos
céus, socorrei a nós.
A multidão, chorando, convulsa, desvairada, bramia
numa grande onda sonora:
Santa Maria, rogai a
Deus por nós.
. .
. . .
. . .
. . .
. . .
. . .
Era Governador do Estado
o desembargador Joaquim Ferreira Chaves, secretário,
Alberto Maranhão, chefe de polícia, Dr. E. Autran,
ajudante de ordens do governador, o tenente Francisco
Justino de Oliveira Cascudo. Foi este o escolhido
para dispersar, na serra de João do Valle,
o núcleo proteiforme de fanáticos.
O tenente Oliveira
Cascudo seguiu para Campo Grande (então Triunfo).
Requisitou os destacamentos dos lugarejos vizinhos.
Reuniu vinte e duas praças. Num domingo de julho
cercou e prendeu o primeiro grupo de fanáticos que se
tinha aventurado a ir a Triunfo. Pela tarde seguiu
para a serra. Chegou pela madrugada no sopé.
Ramalho e Sabino tinham ido em “santas missões” para
Espírito Santo. O oficial prendeu inúmeros.
Contava com o auxílio decidido do coronel Tito Jácome,
uma bela figura de sertanejo inteligente. Luiz
Florêncio, um grande nome que o sertão respeita, e o Dr.
Vicente Veras, homem de energia e de vontade.
A tropa chegou à tarde
no Espírito Santo. Cercou uma casinha onde
Ramalho, imóvel numa esteira de carnaúba, salmodiava.
Preso, dispersos os ouvintes,
custosos
foram os esforços para
retirarem o místico hierofante daquela atonia.
Dias depois os fiéis eram soltos. Sabino contou
que nada sentia. Tudo era para ganhar a vida.
Ramalho nada disse.
Despreocupado, inerte, semi-inconsciente, aparentou uma
insensibilidade superior.
Qual era o crime? Nenhum quase. Não pregava
contra a República, como o velho Antonio Conselheiro,
imperante bárbaro da Odisséia titânica de Canudos.
Foram livres. Sabino desapareceu.
Misterioso, como sempre, envolveu-se no âmbito dos
capoeirões ignorados, desaparecendo para sempre.
Ramalho voltou à serra. Vinha vencido.
Ninguém o foi receber. Nenhum dos seus numerosos
adeptos o cortejaram.
Supunham-no superior a qualquer vicissitude humana.
Acima da lei, da força, da potência do Governo,
representada nas tropas que marchavam, sertão em fora,
batendo os cangaceiros. A onipotência do mago
transmudou-se em arte de histrião. Foi desprezado.
Esqueceram-no. Voltou para a sua serra, e lá ainda
vive.
A
“República”, no seu número 184, de 22 de agosto de
1899, comentou o caso dos fanáticos de João do Valle,
elogiando a energia e a presteza máscula com que o
tenente Oliveira Cascudo acometera e dispersara o bando.
Tudo depois foi olvidado, esquecido, apagado, ignorado.
Inculto mentor
de inculta gente, degenerado inferior pela raça e pela
cultura, Joaquim Ramalho não pode nem soube fazer
lembrar à História,
sustentando a sua idéia numa epopéia sangrenta como a
que fulgurou nos barrancos fuscos do Vasa-Barris, nas
pedras cinzentas da Favela, ou, antes, na loucura
mística e terrífica do Reino da Pedra Encantada, página
obscura de ouro e de lodo, nos sertões pernambucanos de
1835.
Vivendo no meio da força, não a quis empregar.
Quedou-se num esmorecimento tácito de derrota.
O mais é sabido.
Quanto, na sua degenerescência, impressionar e dirigir
multidões é comum.
Sabemos, desde muito, que os agitadores, os mártires, os
sábios, os guerreiros, os poetas, um por um, todos
enfim, conservam no cérebro luminoso do gênio, a mancha
indelével da loucura.
Margarida de Souza Neves
Coordenadora da equipe de pesquisa
2006 |