A epilepsia como metáfora

MALRAUX, André. A condição humana.

HARTOG, François. O século XIX e a história.

B.Negão. Enxugando gelo.

MALRAUX, André. A condição humana. Rio de Janeiro: Record, 1988. (Coleção Grandes Traduções)
Tradução: Ivo Barroso
Título original em francês: La condition humaine


 

André Malraux (1901-1976) foi militante do Partido Comunista Francês e Ministro da Cultura no governo do general Charles de Gaule, entre 1958 e 1969. Em 1931, fez uma volta ao mundo, financiado pela editora Gallimard, para recolher material para uma exposição sobre o relacionamento entre o mundo grego e o budismo. Foi assim que conheceu bem a China, e assim que começou a escrever sobre ela. Participou de diversos conflitos contemporâneos, como o nacionalismo chinês, a Guerra Civil espanhola e a luta contra as atrocidades do nazismo.

A condição humana foi publicado em 1933 e foi ganhador do prêmio Goncourt (prêmio literário de ficção em prosa na França). Ele trata ficcionalmente dos sentimentos, das expectativas, das ansiedades, da culpa e da ideologia de Tchen e de outras personagens revolucionárias chinesas em 1927, no movimento que deu início à revolução chinesa. Naquele 21 de março teve início, como planejado, a tomada das bases policiais de Xangai pelos comunistas. Esses comunistas estavam, então, unidos por um discurso similar àqueles que chamavam de “os azuis”, apenas com as diferenças de o seu discurso conter mais promessas e de ser dirigido ao proletariado, segundo uma das personagens de André Malraux.

No momento do livro em que podemos encontrar uma menção à epilepsia, a insurreição está em seu segundo dia de ação e está lançada uma polêmica entre as três personagens principais – Tchen, Kyo e Katov - sobre como guiá-la dali em diante. Os seus aliados contra os senhores de terras, os membros do Partido Nacionalista da China (o Kuomintang) exigiam que os comunistas entregassem suas armas a eles, para que pudessem unificar finalmente a China. E esta é a discussão nesse momento da narrativa.

Kyo percebe que Tchen, já bastante perturbado pelo assassinato que cometeu na primeira cena do livro, está também bastante insatisfeito e decepcionado, uma vez que as motivações que fizeram dele um revolucionário se esvaíam com o início da insurreição. Ele sente que já não pode se afastar de Tchen nem dele se aproximar. E no momento que Kyo percebe isso, Malraux escreve:

“[...] sentia a ruptura possível como teria sentido a ameaça de crise num amigo epiléptico ou louco, no momento de sua mais alta lucidez.” (p.130)

Neste momento, a possibilidade de afastamento de Tchen, a provável ruptura dos dois companheiros é comparada à ameaça de uma crise epiléptica, mostrando que a crise é vista como um afastamento, um desligamento do doente da sociedade, dos amigos. Ela é também vista como uma ruptura, o que nos cabe perguntar é se o autor considera que essa ruptura parte do doente ou daqueles que o cercam, e saber se essa ruptura significa afastamento ou isolamento. Se a visão do autor está tão impregnada de preconceito como estava a visão da maioria de seus contemporâneos, inclusive a dos médicos brasileiros do século XIX e início do XX.

E então, aparece um comentário curioso: “no momento de sua mais alta lucidez”. Ele coloca aquela ruptura como uma coisa tão inesperada e tão estranha quanto um epiléptico que, em plena lucidez, entra em uma crise, já que aquele seria um momento de união entre os revolucionários.

Outro aspecto a ser observado é a associação discursiva entre o epilético e o louco, uma vez que Malraux compara a sensação de pressentimento da ruptura com seu companheiro vivida por Kio com “a ameaça de crise num amigo epiléptico ou louco” , e constrói assim uma equivalência, ao menos no que se refere à experiência da ameaça de uma crise, entre o epilético e o louco, associação essa que também está presente, até o início do século XX, no campo médico, que considera a epilepsia como uma forma de doença mental.

A sublinhar, no caso do texto de Malraux, a força metafórica da alusão à epilepsia e a loucura como recurso expressivo da antecipação da crise e da ruptura entre Kio e Tchen.

Aline dell´Orto Carvalho
Bolsista de IC
2007

 

HARTOG, François. O século XIX e a história: o caso Fustel de Coulanges. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2003. (419 páginas).
Título original em francês: Le XIXème siècle et le historie: le cas Fustel de Coulanges

 
François Hartog é historiador francês e possui uma vasta produção sobre a escrita da história. No momento é professor na École des Hautes Ètudes en Sciences Sociales de Paris.

O século XIX e a história: o caso Fustel de Coulanges é uma obra sobre a história da historiografia francesa do século XIX que analisa a produção historiográfica de Fustel de Coulanges. O autor tem como objetivo utilizar menos a vida de Fustel e mais as condições de produção e conflitos gerados por um historiador que enfrentou diversas polêmicas, principalmente com relação ao método de análise histórica que empregava. Conseqüentemente, Hartog não se prende aos limites cronológicos da vida de Fustel, incluindo também as apropriações de sua obra em um contexto que lhe é posterior, assim como a transformação definitiva do historiador em história, concretizada em 1930 com as comemorações do centenário de seu nascimento.

No primeiro capítulo do livro, sob o título A cidade antiga e a cidade moderna, o autor apresenta A cidade antiga como um exemplo da análise lógica institucional utilizada por Fustel em oposição à chamada história liberal, que faz uma história baseada em leituras que recorrem ao evento da Revolução Francesa como marco fundamental. Neste contexto, em uma análise sobre o significado da Comuna e sua importância histórica para Fustel, encontra-se a única referência à epilepsia do livro:

“Debruçados sobre a cabeceira do doente, todos esses médicos perspicazes do corpo social vão repetindo o diagnóstico: loucura. Como Flaubert, para quem Paris, passada a ‘congestão’ do assédio, está ‘completamente epiléptica’.” (p.72)

A expressão foi retirada de uma carta de Flaubert a George Sand, escrita no dia 30 de abril de 1871, e transcrita na obra de G. Glazer, De la Commune comme maladie mentale. Ela realiza uma ligação entre a desordem existente em Paris e a epilepsia, utilizando uma metáfora da medicina para caracterizar uma doença social: a sociedade francesa é comparada a um organismo, que está doente com a desordem causada pela Comuna. E a desordem é facilmente comparada à epilepsia, já que a cidade, sob o impacto de uma crise demonstra total descontrole. A ligação entre epilepsia e loucura também é evidente neste trecho.

A seguir o autor afirma:

“Um pouco mais original, Fustel recorre porém à medicina para melhor ressaltar que esses homens não só não fazem a história, como nem ao menos sabem o que fazem, porque até os seus atos lhes escapam. Não um conluio, mas antes uma alucinação, a ação deles , escapando à razão e à vontade, parte do inconsciente, uma vez que há “na vida dos povos, como na do indivíduo, uma multidão de atos inconscientes nos quais a vontade não tem nenhuma participação e não são orientados por nenhuma razão”.(pp. 72-73).

O fato de que Fustel também recorre à medicina para afirmar que a Comuna foi realizada por homens que não utilizaram a razão, ao caracterizar seus atos como inconscientes, demonstra uma outra ligação entre doença social e a irracionalidade. Apesar de não citar a epilepsia, reforça a idéia de que a desordem social pode ser comparada com um ato irracional que se identifica como uma doença.

Mariana Lapagesse de Moura
Bolsista de IC
2005

 

B.Negão. Enxugando gelo.
Artista: B. Negão & Os Seletores de Frequência
Editado e distribuído em 2004 pela L&C Editora.



 

Capa do álbum Enxugando Gelo; à direita, B.Negão.

“[...] Corte pra outra cena, sem anestesia. A liberdade estendida na sua frente tendo um ataque de epilepsia
Ordem para o povo, progresso pra burguesia
Tele-apatia, nossa ação já se encontra no campo do movimento condicionado
Sorria, você está com o filme queimado
[...]”

O trecho acima destacado traz versos da música Enxugando Gelo, nome que dá título ao segundo trabalho do rapper B. Negão, primeiro com o sexteto Os Seletores de Frequência. Nas músicas do álbum, segundo seu site oficial, “uma mistura explosiva de Hip Hop, Ragga, Dub, Jazz, Samba, Soul, Funk Carioca e Rock”. Considerado pela crítica especializada um dos mais criativos letristas da nova geração da música brasileira, o carioca Bernardo Gomes Ferreira dos Santos tem destacada carreira caracterizada pela militância por novos e mais democráticos processos de distribuição da produção fonográfica.

Suas rimas irônicas e ácidas, interpretadas com uma dicção corrompida, constroem uma narrativa na qual, não raro, analogias e metáforas servem para analisar, denunciar e recusar as contradições da contemporaneidade.

Assim, a imagem de uma liberdade sofrendo um ataque de epilepsia é utilizada para denunciar a fragilidade de uma realidade social dramaticamente hierarquizada, onde povo e burguesia não desfrutariam de forma equânime das benesses sociais. A metáfora da liberdade como um organismo doente serve para explicar a desordem social que, contraditoriamente, promove o movimento condicionado dos indivíduos apáticos frente às dificuldades.  

Outubro de 2009


 

©Portinari

Uma História Social da Epilepsia
no Pensamento Médico Brasileiro

História - PUC-Rio