A epilepsia na ficção literária

A Epilepsia em Cordel

Augusto dos ANJOS. A um epilético

Machado de ASSIS. O Alienista.

Mia COUTO. A varanda do frangipani

Alev Lytle CROUTIER. Los palacios de la memoria

Fiódor DOSTOIÉVSKI. Os Irmãos Karamázov

Gustave FLAUBERT. Madame Bovary

Sylvio FLOREAL. “No outro lado da vida: um dia no Hospício de Juqueri.”

Amin MAALOUF. Léon l’Africain.

Gabriel Garcia MÁRQUEZ. O Outono do Patriarca

Michel de MONTAIGNE. Ensaios

Raduan NASSAR. Lavoura Arcaica

Arthur PHILIPS. Praga

Guimarães ROSA. Grande Sertão: Veredas

Érico VERÍSSIMO. O tempo e o vento, parte II: O Retrato, vol.2.

Érico VERÍSSIMO. Olhai os lírios do campo.

Gustave FLAUBERT. Madame Bovary. (tradução de Araújo Nabuco). São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1971.


 


Capa da primeira edição de
Mme. Bovary, 1857.

Caricatura de Lemot, intitulada Autópsia de Mme. Bovary, de 1869.

 

Extraordinário!... – Comentou o farmacêutico. – Mas é muito possível que os abricós hajam ocasionado a síncope!” (p.158)

Homais referia-se ao que talvez houvesse ocasionado a perda de sentidos em Ema Bovary: a influência de determinados aromas. Em silêncio, Carlos, o marido, tentava se recompor do impacto causado pela cena que acabava de presenciar: após soltar um grito, Ema, sua pobre mulher, caiu ao solo, de bruços; a filha, Berta, assustada, chorava, clamando pela mãe; Felicidade, a criada, desapertava as roupas da ama, que tinha movimentos convulsivos pelo corpo.
 

 Após saber de Carlos que o episódio ocorrera de repente durante a refeição da tarde, Homais seguia no diagnóstico: “[...] Seria mesmo um belo tema para estudos,  tanto sob o aspecto patológico como sob o aspecto fisiológico”. E aproveitava para exprimir todo seu anticlericalismo: “os padres conhecem-lhe a importância, eles que sempre misturavam os aromas em suas cerimônias. É para entorpecer o entendimento e provocar êxtases – coisa aliás, fácil de obter entre as mulheres, mais delicadas que nós. Citam-se muitas que desmaiam ao cheiro de chifre queimado, de pão quente...” (idem)

O farmacêutico, ignorando Carlos que, preocupado em zelar pelo sono de Ema – que a essa hora dormia imóvel e pálida como uma estátua de cera, mantendo, contudo, as mãos hirtas –, pedia silêncio, entusiasmava-se:

E não só os homens [...] estão expostos a essa coisa, mas também os animais. Assim, o senhor conhece o efeito singularmente afrodisíaco que produz a Nepea cataria, vulgarmente chamada de erva-de-gato, na espécie felina; por outro lado, para citar um exemplo, que lhe seguro autêntico, Bridoux (um de meus velhos colegas, atualmente estabelecido na rua Malpalu) possui um cachorro que cai em convulsões, mal lhe chegam perto uma tabaqueira. Muitas vezes mesmo, Bridoux faz experiências na presença de seus amigos, em seu simples pavilhão de Bois Guillaume. Acreditar-se-á que um simples esternutatório possa ocasionar tais efeitos em um quadrúpede? É extremamente curioso, não é verdade?” (idem)

O “sim” distraído de Carlos não abalou Homais:

- Isso nos prova [...] as irregularidades sem número do sistema nervoso. No que toca à sua senhora, ela sempre me pareceu, confesso-o, uma verdadeira sensitiva. Eis porque não lhe aconselharia, meu bom amigo, nenhum desses pretensos remédios que, sob o pretexto de atacarem os sintomas, atacam o temperamento. Não, nada de medicamentos inúteis! Regime, eis tudo!” (idem)

A essa altura, Ema delirava e nenhum dos que ali miravam aquela mulher sobre a cama que, mesmo tendo as pálpebras cerradas, deixava escapar duas torrentes de lágrimas que deslizavam lentamente sobre o travesseiro, fazia idéia do que havia ocorrido. Com sua pena delicada, Flaubert nos oferece, mais adiante, as reais causas do quadro apresentado por Srª Bovary...

Inaugurando sua carreira como romancista com Madame Bovary, Gustave Flaubert (1812-1880), escritor que após sofrer forte censura do governo francês, tendo sido inclusive levado à Corte Correcional, construiu uma carreira de destaque em seu país, tornando-se um dos maiores nomes do Realismo. O autor em nenhum momento utiliza o termo epilepsia ou crise epilética em sua narrativa, ou através do farmacêutico, para descrever o mal-estar sofrido por Ema Bovary. Contudo, esse trecho nos permite encontrar, nos interstícios do não dito[1], uma clara alusão à sintomatologia da doença. Primeiramente, alude à antiga crença de que uma substância de odor muito ativo pode provocar crises no indivíduo com epilepsia, era prática comum entre os antigos romanos forçar os escravos a cheirar azeviche para ver se sofriam da moléstia. É interessante também destacar que Flaubert sofria da doença e, sendo filho e irmão de médicos, não causa estranheza o fato de caminhar tão confortável pelos argumentos médicos não só nesse trecho, bem como em todo o romance. Nesse sentido, convém notar que Carlos Bovary é médico; Homais, farmacêutico; Canivet e Larivière, personagens com breves aparições, são cirurgiões. Todos, não raro, descrevem ou são descritos em suas práticas. Outro destaque é que, na construção do diagnóstico para provar as irregularidades sem número do sistema nervoso, o farmacêutico recorre ao exemplo de crises sofridas por um cachorro, dessa forma, mesmo que indiretamente, animaliza a doença e o doente. Por fim, cabe aqui o lembrete de que Homais estava totalmente equivocado em seu diagnóstico. O motivo da síncope de Ema era de outra natureza. Curiosos? Leiam o romance e descubram.

 

[1] George Duby, A História continua p. 31.

 

Outubro de 2009

 

Sylvio FLOREAL. “No outro lado da vida: um dia no Hospício de Juqueri.” IN: COSTA, Flávio Moreira da (org.). Os melhores contos de loucura. Rio de Janeiro: Ediouro, 2007.
 


Sylvio Floreal é pseudônimo de Domingos Alexandre (1862-1929), que foi pedreiro, passou pela política operária da época e se tornou jornalista, cronista e romancista. Literato atípico, escreve sobre Os Vícios, Misérias e Esplendores da Cidade de São Paulo, e permite identificar o lado noturno da cidade que, na década de 1920, quer construir  para si mesma a imagem de cidade progressista e capital intelectual do modernismo brasileiro.

A crônica de Floreal selecionada para figurar no livro organizado por Flávio Moreira da Costa publicado em 2007 e que tem os mais diversos contos sobre a loucura, trata das precárias condições de vida dos internos do Hospício Juqueri por volta da década de 20 do século XX. Foi publicada originalmente nou livro de crônicas Ronda da meia noite, de 1929 e reeditado em 2003, cujo tema é a vida em São Paulo e as suas transformações no começo do século XX. Nas crônicas desse livro, o autor usa o gênero reportagem, que começa a ganhar campo nessa época.

Floreal aborda, nesse texto, um dia que passou no Hospício de Juqueri, no estado de São Paulo. No momento em que o autor narra a sua entrada no Hospício e a visão que tem dos doentes, comenta:

“E o deboche da loucura, a pornéia da demência, finaliza, no negror dessa noite pressaga, entre últimos magotes lusco-fusco de epiléticos, teorias fulvas de danados agressivos, bandos verde-negro, luciferinos, de furiosos, tatalando os dentes numa ronda ameaçadora de destruição.” (p.375)

            Há, nas colônias, enfatiza o acompanhante de Sylvio, médicos, engenheiros, freiras, padres, médicos. Há, também, um jornalista. No momento que entra em uma das colônias, lugar que serve para manter os loucos o mais distante possível da rotina de um hospício, onde eles possam ter a ilusão de liberdade, ele narra:

 “Os olhos – janelas por onde as suas loucuras espiam para o mundo – são todos estriados de listras sanguinolentas, e com os globos fora das órbitas; parecem órgãos que, não tendo podido enlouquecer, procuram fugir do corpo em que estão encarcerados.” (p.378)

Há, ainda, uma ala separada para as mulheres, exclusivamente feminina. Quando entra aí, ele diz:

 “A mulher louca impressiona mais do que o homem. Quis o acaso [...] que eu presenciasse uma cena comovedora de epilepsia. A doente, uma moça forte, com os seus traços de beleza ainda não deformados pela enfermidade, rola por terra e, aos estremeções e contrações nervosas, debate-se horrivelmente por espaço de alguns minutos. Presenciei esse fenômeno desagradável e saí a convite da pessoa que me acompanhava [...]” (p.380)

 Nesse momento, o autor, ainda que possa não ter consciência disso e não ter essa intenção, absorve e manifesta muito dos preconceitos e da ignorância para com as pessoas que têm epilepsia, próprios não só da sua época, mas ainda muito presentes até os nossos dias. O autor faz isso seja quando naturaliza a internação da moça como doente mental, o que é uma manifestação de ignorância comum por parte da medicina da época, pois a epilepsia, hoje sabemos, é uma síndrome e não uma doença mental; manifesta preconceitos fortíssimos quando diz que a mulher tem seus traços de beleza “ainda não deformados pela enfermidade”, e demonstra uma compreensão da epilepsia como algo que degenera, que acaba com a pessoa e até com a sua aparência. Depois, ele manifesta a opinião da maior parte das pessoas que presenciam uma crise de epilepsia, o susto, quando diz que ela “debate-se horrivelmente” e que aquele é um “fenômeno desagradável”, ainda que, no começo do trecho, ele tivesse afirmado que aquela tinha sido uma “cena comovedora”. Tanto ele acha que aquela moça vai ser desgastada, acha aquilo horrível, quanto lhe desperta pena, lhe comove.

Esse tipo de reação é muito comum de ser encontrada tanto em relatos de época quanto nos contemporâneos, uma vez que a crise de epilepsia pode ser uma cena, realmente, muito forte e impactante. No entanto, mesmo que desperte alguma comoção, isso não impede que se isolem os chamados epiléticos e que os tratem como pessoas que não podem participar do convívio social e que têm sua vida desgraçada pela síndrome, enquanto a sua desgraça pode ser vista como a própria exclusão promovida pela sociedade.

“A loucura até parece uma desgraça inteligente, uma infelicidade genial, porque começa a devastar o paciente naquilo que ele tem de mais perfeito e útil – a cabeça. [...] Fora, o Sol, que tem hábitos democráticos de dar a sua luz gratuitamente a todos os mortais, envolvia em ouro quente o Hospício, como a querer iluminar, num gesto de suprema piedade, a razão imersa em trevas de todas aquelas criaturas humanas.” (p. 378 – 381)

 

 

Aline dell´Orto Carvalho
Bolsista de IC

Dezembro de 2008

 

Mia COUTO. A varanda do frangipani. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. (147 pps.)
 


Mia Couto é um escritor moçambicano bem conhecido no Brasil. Seus livros anteriormente aqui publicados, O último vôo do flamingo; Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra; O outro pé da sereia e Terra sonâmbula tiveram uma excelente aceitação do público leitor e da crítica. Dono de uma linguagem muito própria, este escritor que também é professor e biólogo, aprofunda as raízes de sua escrita nas tradições e nos impasses da sociedade moçambicana, em seus livros sempre esquartejada entre a memória ancestral e os desafios do mundo contemporâneo.

O surpreendente enredo deste livro narra a história do inspetor Izidine Naíta, que recebe a missão de investigar o assassinato de Vasto Excelêncio, diretor de um asilo de velhos instalado na Fortaleza de São Nicolau, bastião que assistira aos horrores da guerra da independência de Moçambique. Ocorre que Naíta chega à fortaleza com seu corpo habitado por um xipoco, o espírito de Ermelindo Mucanga, um operário morto quando trabalhava nas obras de restauração da Fortaleza de São Nicolau durante a guerra e cuja alma não tivera descanso pelo fato de Mucanga ter morrido longe dos seus e, por isso, não ter tido os ritos fúnebres da tradição de sua terra.

Naíta interroga os velhos do asilo, o malungo (branco) Domingos Mourão, que já não se sente português, mas nunca será africano; Navaia Caetano, o velho-criança; o pequenino Nhonhoso e a feiticeira Nãozinha, bem como a enfermeira Marta Gimo, que lhe contam histórias fantásticas e incongruentes. Na varanda da fortaleza, o frangipani de flores perfumadas desafia o vento e olha o infinito do horizonte. Sob sua sombra, o Halakavuma, também conhecido como pangolim, uma espécie de tatú comedor de formigas que os antigos acreditam habitar os céus e descer de quando em vez à terra para comunicar-se com os guardiões da tradição, vai deixando suas escamas premonitórias.

O livro não menciona a epilepsia, mas, no capítulo intitulado Revelação, o transe em que a feiticeira Nãozinha faz sua profecia é assim narrado:

“As palavras pareciam sair-lhe não da boca mas de todo corpo. Enquanto falava ela sofria convulsões, escorriam-lhe babas pelo pescoço. Até que a feiticeira se enclavinhou, em espasmo. Todos se suspenderam, ávidos pela palavra que se seguia:
- Cuidado! Vejo sangue!
- Sangue!?, se espantou o polícia.
- Eles virão aqui. Virão para lhe matar.
- Matar-me? Quem me vai matar?
- Eles virão amanhã. Você já está perdendo a sombra.
Nãozinha acelerava o transe. Era como se o corpo dela se animasse de viva labareda.
- Amanhã será. O assassino eu o estou a ver. [...] Izidine: você se meteu na casa da abelha. Esta fortaleza é um depósito de morte.”
(p. 135)

Na descrição do transe da velha nyanga, toda a sintaxe da crise epilética aparece de forma inequívoca, e remete às associações ancestrais entre a epilepsia e o transe em que os oráculos são emitidos, aparentemente também presentes nas tradições africanas.

Margarida de Souza Neves
Coordenadora da equipe de pesquisa
Novembro de 2007

 

 

Augusto dos Anjos. "A um epilético" IN Eu, e Outras Poesias. Virtualbooks Literatura Brasileira
(http://virtualbooks.terra.com.br/freebook/
freebook_portugues1.htm, acesso em 30/04/2006)
 

A um epilético

 

Perguntarás quem sou?! – ao suor que te unta,
À dor que os queixos te arrebenta, aos trismos
Da epilepsia horrível, e nos abismos

Ninguém responderá tua pergunta!

Reclamada por negros magnetismos

Tua cabeça há de cair, defunta
Na aterradora operação conjunta
Da tarefa animal dos organismos!
Mas após o antropófago alambique
Em que é mister todo o teu corpo fique

Reduzido a excreções de sânie e lodo,
Como a luz que arde, virgem, num monturo,
Tu hás de entrar completamente puro

Para a circulação do Grande Todo!


Escritor brasileiro do início do século, Augusto dos Anjos é autor da poesia acima, destinada aos que sofrem com a doença. Nela, o ataque é representado de maneira horrível, onde o ser humano encontra a paz somente ao completar o seu ciclo de vida na terra, ou seja, ao morrer. O principal interesse que esta poesia traz para a pesquisa são as figuras de linguagem utilizadas para representar a pessoa com epilepsia.

Aderivaldo Ramos de Santana e Leonardo Martins Barbosa
Rio de Janeiro, 30 de abril de 2006

 

 

Michel de MONTAIGNE. “Dos canibais”. IN ENSAIOS. (COLEÇÃO OS PENSADORES). 3ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1984. pp. 100 - 106.

Michel de Montaigne nasceu na França em 28 de fevereiro de 1533, e fazia parte da burguesia, uma classe social em ascensão na época. Formou-se em Direito na Universidade de Toulouse em 1554, mas não exerceu a profissão de advogado por muito tempo devido às constantes desilusões com as instituições jurídicas e as condenações que considerava criminosa. Tentou carreira na corte de Carlos IX, mas não gostava do rígido protocolo a ser seguido e abandonou por completo esta idéia. Após sofrer uma grande perda em 1574, isolou-se na torre de seu castelo e por dois anos dedicou-se a escrever os capítulos I e II do livro Ensaios.


O livro Ensaios é o resultado de várias anotações e meditações de Montaigne sobre assuntos diversos. Ele escrevia sobre o mundo a partir de si mesmo e de suas experiências, e suas idéias não são colocadas em uma ordem cuja lógica seja imediatamente percebida pelos leitores, uma vez que utiliza constantemente o recurso estilístico da contradição e o leitor é levado por caminhos estranhos e diversos.

O capítulo XXXI, Dos Canibais é um ensaio em que Montaigne escreve sobre a descoberta do Novo Mundo, ao qual se refere como a França Antártica, e sobre seus habitantes. Para Montaigne, esse mundo é perfeito, e representa a volta à idade de ouro das primeiras civilizações.

Em um trecho na página 102 da edição aqui utilizada, Montaigne passa a descrever como é este Novo Mundo e as pessoas que o habitam:

“A região em que esses povos habitam é de resto muito agradável. O clima é temperado a ponto de, segundo minhas testemunhas, raramente se encontrar um enfermo. Afirmaram mesmo nunca terem visto algum epiléptico, remeloso, desdentado ou curvado pela idade.”.

A alusão à epilepsia é incidental e absolutamente secundária na obra, mas reforça o argumento do autor. No trecho, a epilepsia é diretamente associada a algo ruim, feio e imperfeito, coisas tão freqüentes no mundo de Montaigne e que nesta nova terra que o autor idealizava não poderiam existir.

Samantha Valério Parente Souza
Bolsista de Iniciação Científica
Rio de Janeiro, 16 de maio de 2005

 


Alev Lytle CROUTIER. Los palacios de la memoria. Barcelona: Grijalbo Mondadori, 2000. (309 pps.)
Título original em inglês: Seven houses.
Até fevereiro de 2005 não existia tradução em português do livro.

Alev Lytle Croutier nasceu na Turquia, estudou literatura em Estambul e vive, atualmente, entre os Estados Unidos e a França, paises em que é reconhecida como romancista e roteirista.

O livro relata a saga das mulheres de uma família turca entre 1910 e o início do século XXI, e entrança a história dessa família ficcional com a história da modernização da Turquia. É uma história de perdas, de reconstruções, de nostalgia, de força e de sensibilidade e a autora transforma em narradores do relato as diversas moradias que abrigaram a família, do palácio comprado em Esmirna no ano de 1910 por Esma - a primeira e trágica heroína do livro - aos impessoais apartamentos do condomínio de Istambul que Âmbar - a neta de Esma - encontra como morada familiar ao regressar de um auto-exílio nos Estados Unidos com sua filha Nellie.

O livro traz uma única alusão à epilepsia, e essa alusão não tem nenhuma importância em relação à narrativa do romance, ainda que seja expressiva no que diz respeito à associação da epilepsia ao paroxismo da desgraça humana.

No trecho, Âmbar, de volta a Istambul, visita sua tia Aída, belíssima em sua juventude, e que um dia havia sido Miss Turquia e encantado o próprio general fundador da Turquia moderna, o chefe do partido nacionalista que se tornara presidente da república turca em 1923, Kemal Pacha Ataturk . Aida se submetera a uma cirurgia plástica para recuperar a beleza perdida com a idade, mas, vítima de um embusteiro, ficara monstruosa.

Âmbar a encontra fechada em seu apartamento quase sem luz, em companhia de outras sete mulheres desfiguradas, também elas vítimas do cirurgião embusteiro. As mulheres conversavam, liam jornais em voz alta e adivinhavam sua sorte supostamente inscrita no poso que o pó de café deixava nas xícaras em que bebiam:

“Aída estava absorta, olhando o poso de café. Uma mulher com a voz etérea lia em voz alta um jornal enquanto as demais a escutavam. No início parecia poesia – o tom o sugeria - , mas as palavras se desintegraram na história de um homem que tinha cozinhado e devorado três viúvas. Quando a mulher terminou, as demais suspiraram e balançaram a cabeça. Outra começou a ler alto: ‘surdo-mudo epilético se afoga numa privada rudimentar’. Liam histórias horríveis e riam das coisas mais tristes e cruéis.
- Que tipo de festa é essa? – perguntou Âmbar à mulher que lhe havia aberto a porta ao entrar.
- A festa da depressão – replicou a mulher – Você não percebe? Tratamos de pensar nas coisas mais deprimentes. Assim nossos problemas parecem menores e isso faz que sintamos menos o que aconteceu conosco.
- Preferimos a escuridão – sussurrou outra mulher sentada a seu lado – somos mulheres da penumbra. Formamos a sociedade das mulheres da penumbra. Somos todas sobreviventes, sempre caímos de pé, como os gatos.” (p. 253-254)

Nessa passagem, a epilepsia do surdo-mudo que se afoga em meio à imundície de uma privada rudimentar, aparece discursivamente associada de forma direta a “histórias horríveis”, a “coisas mais tristes e cruéis” e a “coisas mais deprimentes”. Um dos elementos das notícias dos jornais sensacionalistas que estampavam em suas páginas o paroxismo da desgraça, e pareciam fazer Aída e suas companheiras de infortúnio esquecer seu próprio sofrimento.

Margarida de Souza Neves
Coordenadora da equipe de pesquisa
2004

 

 

Arthur PHILIPS. Praga. Romance. Rio de Janeiro: Civili-zação Brasileira, 2004. (419 páginas).
Título original em inglês: Prague. A novel
 

Praga é, paradoxalmente, um romance que tem como cenário e personagem principal a Hungria do período imediatamente posterior à queda do mundo soviético. A trama está situada em Budapest, no ano de 1991, e o livro pode ser lido como uma narrativa sobre um grupo de jovens descolados, norte-americanos e canadenses, que vivem os impasses de sua geração e o choque entre o mundo globalizado e as velhas tradições húngaras, personificadas em um personagem-síntese, Imre Horváth, herdeiro de uma antiga editora cuja história se confundia com a história do país ao longo dos séculos XIX e XX. Se o velho editor, a cidade de Budapest e a geração dos jovens globalizados são personagens centrais, a segunda guerra mundial, e seus efeitos devastadores sobre a velha Europa, também o é.

Praga, a cidade título, aparece apenas no último parágrafo do livro, como

“(...) uma terra de torres e palácios de brinquedo e portões pintados de dourado e pontes com estátuas de olhos tristes espiando sobre uma água preta enevoada, uma aldeia de paralelepípedos e vitrais não atingidos por canhões, e aquele castelo de contos de fadas flutuando sobre ele, flutuando livre de qualquer amarra, uma cidade onde certamente qualquer coisa será possível.” (p.419)

O autor é um norte-americano de Minneapolis, que morou em Budapest entre 1990 e 1992 e vive hoje em Paris. Esse é seu romance de estréia.

A alusão à epilepsia é completamente marginal à trama do livro, mas nem por isso é menos expressiva. Ela está no início do capítulo V da segunda parte do livro, dedicada à saga da Horváth Kiadó, a editora fundada em 1808 e herdada por Imre.

O Autor faz da marca registrada da editora – uma pequena pistola no ato de disparar uma bala na qual é possível ler as letras MK – a metonímia da própria editora e assim caracteriza a capacidade de adaptação da editora a novas situações políticas vividas na Hungria e sua plasticidade ideológica:

“Sob o controle do filho do primeiro Imre, Károly, a Editora Horváth logo se especializou em anúncios imperiais dos Habsburgos e publicações (em húngaro e alemão), coletâneas de poesia em panfletos e manifestos políticos anti-Habsburgo, que, nas décadas de 1830 e 1840, proliferaram com fertilidade leporina. Em 1848, o desenho de mau gosto do pai de Károly disparava na parte inferior de editos governamentais colados em quiosques, na contracapa de pequenos volumes de versos de János Arany e em boletins de educação pública de parlamentares húngaros com pretensões reformistas. A pequena pistola fumegava no final de um livreto conciso comemorando o aniversário do imperador austríaco retardado e epilético: um Volume em Honra do Aniversário e Nosso Rei e Imperador, Ferdinando Habsburgo, Quinto a Levar Esse Soberbo Nome, Que Possa Reinar por Longo Tempo, e Que Sua Sabedoria Nos Guie, com as Bênçãos de Deus e para o Benefício de Todos os Seus Leais Súditos Húngaros Que Prosperam sob Seu Cuidado Paternal e Generoso. Mas a bala MK também voava imóvel na última página de uma coletânea de poemas do amante-aventureiro-poeta-revolucionário Boldizsár Kis, intitulada Canções de nascer para o meu país.” (p. 163).

A epilepsia do imperador Ferdinando V Habsburgo, associada a seu suposto retardo mental, aparece como elemento de desqualificação do monarca austríaco que, então, reinava sobre a Hungria.

Margarida de Souza Neves
Coordenadora da Pesquisa
2005

 

Fiódor DOSTOIÉVSKI. Os Irmãos Karamázov. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.
Tradução: Natália Nunes e Otto Maria Carpeaux

 

Fiódor Dostoiévski é considerado um dos maiores escritores russos de todos os tempos, e esta a sua obra mais primorosa.  Melhor ou não, a verdade é que esta obra é uma das grandes referências da literatura do século XIX.  Dostoiévski era um profundo cristão e viveu uma época de grandes contradições na Rússia, especialmente no que se refere ao contato entre o oriente e o ocidente e todos os conflitos que foram produzidos a partir daí.  Dostoiévski era um portador de epilepsia.

O romance se desenvolve em uma aldeia russa em torno do ano de 1880, época também que o autor a escreveu.  A história gira em torno da relação de um pai, que é assassinado no meio do romance por um de seus quatro filhos, que por sua vez são representantes de quatro personalidades russas bem distintas.  É muito complexo para ser resumido em poucas palavras a relação destes cinco personagens, basta dizer que Smierdiákov, que tem uma personalidade fraca e corrompida – com uma idéia de degradação humana – é também um epilético, assim como o próprio autor. 

A epilepsia é abordada de várias vezes ao longo do romance, ajudando a construir a personalidade de Smierdiákov e estando presente inclusive na cena onde ocorre o assassinato.  Decidi transcrever somente o primeiro trecho em que isto é mencionado, e algumas das primeiras descrições de Dostoiévski acerca deste personagem, e portanto o ponto de onde parte Smierdiákov para sua participação no resto do romance. 

“A burra de Balaão não era outro senão o criado Smierdiákov, rapaz de vinte e quatro anos, pouco sociável e taciturno, embora não fosse selvagem ou acanhado;  pelo contrário, era arrogante e parecia desprezar todo mundo.  Chegou o momento de falar a seu respeito, ainda que pouco.  Educado por Marfa Ignátievna e Grigóri Vassílievitch, o garoto, ‘natureza ingrata’, segundo a expressão de Grigóri, crescera selvagem no seu canto.  Na sua infância, tinha prazer em enforcar os gatos, enterrando-os depois com grande cerimonial.  Para fazer isto, cobria-se com uma colcha de cama, imitando uma casula, e cantava, agitando um simulacro de turíbulo por cima do cadáver.(...)

Grigóri ficou perplexo.  O menino olhava seu amo com ar irônico, seu olhar parecia provocá-lo.  Grigóri não pôde conter-se:  ‘Foi daqui que ela veio!’ – exclamou, esbofeteando-o violentamente.  O menino não se moveu, mas meteu-se de novo no seu canto por vários dias. Uma semana depois, ele teve uma primeira crise de epilepsia, doença que não o deixou mais dali por diante.(...)” (pg. 138)

“... Fiódor Pávlovitch decretou logo que tinha ele vocação para cozinheiro e mandou que fosse aprender sua arte em Moscou. Passou ali vários anos e voltou com o aspecto bastante mudado; envelhecido demais para sua idade, enrugado, amarelecido, parecia um skópiets. Moralmente, era quase o mesmo de antes da partida; sempre um verdadeiro selvagem que não procurava a sociedade.” (pg. 140)

Estes trechos resumem bem a maneira como Dostoiévski constrói o personagem.  A história se passa no período em que estamos pesquisando, segunda metade do século XIX, mas em um lugar radicalmente diferente do Brasil, principalmente Rio de Janeiro e Bahia.  Mas não deixa de ser interessante a maneira como o autor, sendo ele um epilético, relaciona o personagem, a doença, diversas características pejorativas.

Leonardo Martins Barbosa
Bolsista de IC
2005

 


Gabriel García MÁRQUEZ. O Outono do Patriarca. 10ª ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 260p
Tradução: Remy Gorga Filho
Título original: El Otoño del Patriarca
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Além de ser um dos mais conhecidos escritores colombianos, Gabriel García Marquez é também um referencial para aqueles que admiram o chamado realismo fantástico.  Através de variadas figuras de linguagem, exageros, coisas sinistras, absurdas, exóticas e impossíveis, Gabriel García Marquez reconstrói diversas realidades sociais, políticas e culturais da região sul-americana e Caribe. Entre suas obras encontram-se Cem Anos de Solidão, e Amor nos tempos do Cólera. Em O Outono do Patriarca, o autor constrói o tempo de um ditador latino-americano. Através de uma linguagem maravilhosa, Marquez mostra como esse tempo é cíclico, sempre se reproduzindo e se reconstruindo de modo a manter o patriarca no poder. É uma pesada crítica a regimes ditatoriais que dominaram a vida política de vários países do continente. Marquez mostra em seu livro, no entanto, que por mais que se renove, esse regime chega a seu outono, e cai.

 

Durante este tempo, há vários momentos de declínio, gerando a impressão de que o ditador estava em seu fim. No entanto, no livro isto é sempre uma impressão e o ditador sempre reaparece até o último capítulo. Na descrição de um desses momentos de queda e fragilidade, o autor usa a palavra epilepsia para construir melhor a imagem desejada:

Nem mesmo os menos prudentes nos conformávamos com as aparências, porque muitas vezes se havia dado por verdade que estava prostrado pela epilepsia e desabava do trono no curso das audiências torto pelas convulsões e espumando de fel pela boca, que havia perdido a fala de tanto falar e tinha ventríloquos escondidos atrás das cortinas para fingir que falava, que lhe estavam saindo escamas de savelha por todo o corpo como castigo por sua perversão (...) mas quanto mais verdadeiros pareciam os rumores de sua morte mais vivo e autoritário ele aparecia quando menos se esperava para impor outros rumos imprevisíveis ao nosso destino.” (p.47)

A epilepsia é usada, portanto, para construir a imagem de um líder que se mostra frágil, sem força e sem liderança. A epilepsia é usada não para descrever o personagem em si, mas sim o seu momento. A epilepsia somente apareceu no seu momento de fraqueza, enganando aos que imaginavam sua queda. Quando o ditador estava estável em termos políticos, não apareceu menção à doença.

Leonardo Martins Barbosa
Bolsista de IC
2006

 

 

Érico VERÍSSIMO. O tempo e o vento, parte II: O Retrato, vol.2. 3ª. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

 

Érico Veríssimo é um autor de grande importância para a Literatura brasileira. O autor é gaúcho da cidade de Cruz Alta e nasce em 1905 , sendo seu primeiro sucesso o romance Olhai os lírios do campo. Deu aulas em uma universidade americana e foi diretor do Departamento de Assuntos Culturais da União Pan-americana, secretaria da Organização dos Estados Americanos.

A trilogia O tempo e o vento termina de ser publicada em 1962. É composta de três partes (O Continente, o Retrato e O Arquipélago), cada uma contendo mais de um livro, num total de sete. O autor, nesta obra, conta a saga da família gaúcha Terra Cambará ao longo do tempo, atravessando gerações e mostrando, pelos olhos das suas personagens, não só a formação do Rio Grande do Sul e de sua população, mas também as situações políticas que abalaram o país e o mundo.

Na segunda parte da trilogia, O Retrato, a personagem principal é Rodrigo Cambará, filho de um grande estancieiro gaúcho e muito rico. Médico, letrado, formado em Porto Alegre, amante incondicional da cultura francesa e da ópera, Rodrigo tem uma forte tendência a trair a esposa com outras mulheres. Ao narrar a relação que ele e uma de suas amantes mantêm, sendo ela a mulher mais importante da sua vida, Érico Veríssimo relata a intimidade do casal e, principalmente, a intensidade dos atos sexuais entre os dois. E é neste momento que aparece uma alusão à epilepsia:

 “No entretanto, terminada aquela espécie de luta corporal que se avizinhava da epilepsia, quando os dois ficavam lado a lado, numa calma exausta e meio triste – mais duma vez ele sentira que devia dizer alguma coisa, fazer alguma promessa, lançar enfim uma luz sobre o futuro.” (p. 292)

Um fato importante a ser sublinhado aqui é que, diferentemente dos outros autores que mencionam a epilepsia, como em alguns exemplos presentes neste site, Érico Veríssimo se refere à doença comparando-a a uma sensação que, para a personagem era a do êxtase do prazer, e que para a sociedade em geral, apesar de ser imoral por se tratar de um relacionamento fora do casamento, a sensação em si mesma também é considerada prazerosa.

 E, ainda, a epilepsia é reconhecida, mais uma vez, pelo descontrole do corpo, pela associação discursiva com uma luta travada pelo doente contra este corpo que não lhe obedece, que o autor percebe como análoga ao embate amoroso e pelo estado de apatia que segue a crise, que a aproxima da calma exausta e meio triste que se segue ao ato sexual.  As características que são a expressão mais visível desta doença, sendo assim as que ficam mais presentes na representação social da doença, permitem a analogia que Veríssimo constrói entre a epilepsia e o ato sexual.

Aline dell´Orto Carvalho
Bolsista de IC
Abril de 2007

 

Érico VERÍSSIMO. Olhai os lírios do campo. 4 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

 

Olhai os lírios do campo, é a obra-prima de Érico Veríssimo. Foi publicado em 1938, num momento em que o Brasil ainda passa por grandes mudanças e uma intensa modernização. Uma sociedade preocupada cada vez mais com o consumo e com a ascensão social toma o lugar da tradicional. Essas mudanças e avanços na tecnologia, na industrialização do Brasil tem um marco divisor: a Revolução de 30. Pano de fundo do livro, a Revolução é também o momento em que ganha de força aquilo que move a personagem principal do livro: o desejo pela ascensão social.

A tranqüilidade do mundo rural tão bem representado na saga O tempo e o vento, o tradicionalismo sulista, a vida pacata e sossegada era então substituída pelo turbulento cotidiano urbano. Esse conflito é muito bem ilustrado nos diálogos montados por Erico Veríssimo entre as personagens que freqüentam a casa do sogro de Eugênio, a personagem principal do livro. O desejo incontrolável de um deles de construir um arranha-céu em Porto Alegre da época representa bem essa nova mentalidade.

Antes da Revolução, não havia universidades no país, o que havia eram faculdades de medicina, engenharia e direito que, portanto, eram profissões muito valorizadas num país formado majoritariamente por analfabetos. Assim, a posição dos profissionais da medicina era de muito prestígio, como mostra a historiografia sobre o assunto discutida nas monografias de Aderivaldo de Santana e de Mariana Lapagesse, disponíveis na página Produção Acadêmica deste mesmo site.

Portanto, esse é o ponto central do livro, manifestado na figura de Eugênio, o jovem e pobre médico que, desde a infância, tem ambições e sonhos de enriquecer. Dividido entre o desejo de ajudar os doentes mais necessitados de assistência médica seguindo o exemplo de um amigo da sua família humilde, e mudar de classe social, Eugênio representa um movimento no sentido de “socialização da medicina”, onde admite-se que a sociedade a influencia, a “modela”, nas palavras de José Leopoldo Antunes¹. Mas ele corre atrás dos seus sonhos, e, para alcançá-los, abdica do amor e da amizade de Olívia. Também formada em medicina, Olívia é a personalização de virtudes que o próprio Veríssimo chama “inumanas”. Sua fé inabalável e a sua aceitação serena da morte deixam transparecer a estabilidade de um momento anterior às mudanças modernizadoras pelas quais o país passa; a ambição de Eugênio se encaixa no segundo momento. E um se apóia no outro, a passagem não é brusca e nem definitiva.

No prefácio escrito pelo autor em 1966, ele destaca a semelhança de Olhai os lírios do campo com O tempo e o vento e outras obras suas: as personagens, os conflitos internos, as situações. No entanto, a semelhança que pretendo destacar aqui é a utilização da epilepsia como metáfora para sentimentos ou ações. Em dado momento do livro, ele narra uma discussão entre um artista moderno e um amante da pintura renascentista. Cada um defende seu ponto de vista. Num momento preconceituoso, Acélio Castanho, o tradicionalista, diz de Diego de Rivera: “Rivera é pernóstico como todo mestiço.” (p.157) Quando perguntado pelo pintor Túlio Altamira o que tem arte a ver com cor, Acélio pensa sobre o assunto - sem, no entanto, mudar de idéia sobre o pintor mexicano. Segue-se o parágrafo que diz:

“Eugênio contemplava Acélio Castanho, que lhe parecia ainda mais pálido que de ordinário. Estava vestido de escuro e seus olhos negros tinham um brilho de febre. Sua testa larga e cor de marfim pregueava-se toda de rugas quando ele ficava a pensar, de olhos erguidos para o alto, como numa ausência epilética.

Quando Eunice e Isabel desceram, falava-se do bolchevismo de Diego de Rivera. Os olhos de Acélio fuzilavam.” (p.158)

Esse trecho mostra uma comparação feita por Veríssimo entre a imobilidade no ato de refletir e o momento de ausência que sucede uma crise epilética. Fala também sobre o olhar de Acélio, por três vezes: na sua comparação, afirma que os olhos do doente, provavelmente durante uma crise epilética, se voltam para o alto, numa “ausência”; diz, ainda, que, nesse momento, o olhar da personagem é febril e fuzilador, comparando-o ao do doente com epilepsia.

Mas o que é mais interessante reparar é que, como é possível notar nesse mesmo site, essa não é a primeira vez que encontramos comparações com a epilepsia nos livros de Erico Veríssimo. É bem possível que esse fato esteja nos mostrando que o uso da doença como fator de comparação, como metáfora era bem comum na linguagem corrente da época. Ainda que, como nesse caso, não esteja sendo usado num tom pejorativo em relação àquela personagem a que se refere, o uso ilustra a repercussão que a doença tinha na sociedade e a ele se aplica a sugestão de Susan Sontag de “doença como metáfora”.

¹ ANTUNES, José Leopoldo Ferreira. Medicina, Leis e Moral: pensamento médico e comportamento no Brasil (1870-1930). São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999.

² SONTAG, Susan. Doença como metáfora. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

Aline dell´Orto Carvalho
Bolsista de IC
Setembro de 2007

 

Machado de ASSIS. O alienista. Porto Alegre: L&PM, 2006.

 

O conto foi editado em versão Graphic Novel em 2007, por Fábio Moon e Grabriel Bá, pela Editora Agir
 

Machado de Assis (1839–1908) foi um dos maiores escritores do século XIX brasileiro e é considerado um dos maiores nomes da nossa literatura. Entre outros fatores, por ser cronista, contista, dramaturgo, jornalista, poeta, novelista, romancista, crítico e ensaísta. Nascido no Rio de Janeiro, filho de operário português e de uma mulher negra, é criado pela madrasta, também mulata, por ter perdido a mãe muito cedo. Entra para o mundo acadêmico por iniciativa e esforço próprios. Foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras. Machado tinha a saúde muito fraca, era gago e tinha epilepsia.

O conto O alienista, no qual trata sobre a medicina, a loucura e a internação dos loucos, deixa transparecer muito claramente o que o autor pensava sobre certos médicos da época e pelas casas de internação, ainda que não tenha vivido a experiência de interno permanente em nenhuma delas. É conhecida sua resistência a fazer qualquer alusão explícita à epilepsia (à época muito equiparada à loucura), utilizando-se apenas de metáforas para tanto.  Neste conto, também não menciona nenhuma vez a doença que sofria, referindo-se somente à loucura.

O conto narra a história do Dr. Simão Bacamarte, que introduz com muita pompa e muitos títulos, como era costume entre os médicos. Ao casar-se, a escolha da esposa, não se deu pela beleza, juventude ou habilidades desta, mas por sua saúde perfeita, fato que permite identificar a fina ironia de Machado em relação à cientificidade dos médicos do século XIX, crítica esta que está presente ao longo de todo o conto.

Preocupado com a defesa da sociedade de Itaguaí, cidade onde vive com a esposa, Dona Evarista, Dr. Bacamarte resolve fundar uma colônia para enclausurar os loucos da cidade. Poderia, assim, aprofundar seus estudos a respeito da loucura. Acontece que o médico começa a achar que todos os habitantes da cidade são loucos e interna a grande maioria deles. Há uma rebelião na cidade contra o alienista, e, nesta rebelião, os cidadãos e os policiais revelam-se pessoas volúveis, que mudam de opinião a qualquer argumento.

Quando percebe que quatro quintos da população estava internada na Casa Verde, como era chamado o abrigo de loucos, o doutor muda de teoria, dá alta a todos, e afirma que a loucura é coisa normal e quem é muito sensato é que deve ser internado. Assim, começa novamente a sua perseguição àqueles que seriam internados na sua clínica, prendendo um razoável número deles. E a população, mais uma vez, ainda que agora ele estivesse dizendo o contrário do que havia dito antes, o considera um gênio.

Após curar todos os internos, Simão percebeu que ele próprio era o mais perfeito de todos, o que pode ser indicativo da pretensão do médico do XIX, e merecia ser internado na Casa Verde. Assim, o alienista interna-se a si próprio, e se dedica a estudar o próprio caso, morrendo sem chegar a conclusão alguma. E, ainda que se desconfiasse que o médico tivesse sido sempre o único louco, o seu enterro foi efetuado com muita pompa e muita solenidade.

Nota-se, no conto, diversas críticas ao ego dos médicos, à sua dedicação integral à ciência e a conseqüente incapacidade de afeto. São constantes e finamente irônicas as críticas aos asilos para internação de loucos, que tinham os aposentos dedicados aos doentes chamados de “cubículos” na narrativa sobre a Casa Verde, que havia sido construída para o médico e suas pesquisas, e era preenchida unicamente conforme os seus critérios pretensamente científicos.  Na narrativa, o Dr. Bacamarte age como quem não deve satisfação alguma a ninguém que fosse leigo em sua ciência, e, no entanto, a Casa Verde era chamada “instituição pública”, uma vez que o médico se arroga o poder de definir o que é o interesse público. O alienista mudou de uma teoria à outra, oposta à primeira que sustentara, e a população nem sequer desconfia que havia algo estranho nisso, acreditando cegamente nele e em sua suposta ciência. O barbeiro, que após liderar a rebelião assume o governo de Itaguaí, a primeira coisa que faz é propor um acordo ao Dr. Bacamarte para que eles dois e o povo ficassem felizes sem que fosse necessário cumprir aquilo que prometera, numa velada crítica aos governantes da época.

Há inúmeras outras observações a serem feitas sobre o conto, no entanto, o que interessa a esta pesquisa são aquelas que tocam a classe dos médicos e que aqui foram mencionadas. Muito provavelmente, ainda que o conto possa ser lido como uma metáfora da sociedade brasileira de sua época, o fato de que o autor centrasse o conto na figura do Dr. Simão Bacamarte pode dever-se ao contato inevitável e desagradável que Machado de Assis devia ter com os médicos que cuidavam de sua epilepsia com os escassos instrumentos da época para lidar com esta doença.

 Aline dell´Orto Carvalho
Bolsista de IC
Abril de 2007

 


Amin MAALOUF. Léon l’Africain. Paris: LGF, 1987. (Coleção Livres de Poche) (348 p)

Existe uma tradução portuguesa do livro, feita por Maria da Graça Morais Sarmento. (Lisboa: Bertrand, 1994.)
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Amin Maalouf (www.aminmaalouf.org e www.aminmaalouf.narod.ru)  nasceu em Beirute no ano de 1949 e radicou-se na França desde 1976.  É um romancista reconhecido internacionalmente, ganhador do prêmio Goncourt em 1993, e algumas de suas obras, em que ficção e história se entrelaçam, estão traduzidas no Brasil, como é o caso de O reochedo de Tanios, O périplo de Baldassare (Companhia das Letras) e Jardins de Luz (Record).   É também ensaísta, e seus trabalhos mais conhecidos neste gênero são As cruzadas vistas pelos árabes (1983), ganhador do prêmio Maison de la Presse, e Identidades assassinas (1998).

Em Leão, o Africano, Maalouf  se baseia na extraordinária vida de Hassan al-Wazzan,  muçulmano nascido em 1488 na Granada muçulmana, e que se fará conhecido no Ocidente como Leão, o Africano.  O personagem real tem sua vida atravessada, definida e redefinida pelos acontecimentos da história de seu tempo: expulso ainda menino de Granada pela violência da  reconquista  e da inquisição, refugia-se com sua família  em Fez, no Marrocos, onde estuda em diversas madrasahs muçulmanas e torna-se, muito jovem e por ocasião da morte de um tio, o chefe de uma missão diplomática ao império Songhai, na época chefiado por Askia Mohammed Toure.  A partir dos 20 anos, Hassan-al-Wazzan diplomata e grande viajante, percorre  todo o Magreb, a Arábia, a África Sahariana, Constantinopla e o Egito.  No retorno de uma de suas peregrinações à Meca, em 1518, Hassan é capturado por piratas sicilianos e, escravizado, e é entregue como um presente ao papa Leão X, que o adota como filho e o faz batizar como João-Leão de Médicis.  Na corte pontifícia do renascimento escreverá sua famosa obra, Cosmographia de Affrica, por encomenda de seu protetor, o papa, e, em razão dela, passará a ser conhecido como Leão, o Africano.  Em Roma, novamente no centro dos conflitos de sua época, assistirá ao saque da cidade pelos soldados do imperador Carlos V.

Na ficção de Maalouf, a vida deste homem muçulmano, judeu e cristão; africano e europeu; oriental e ocidental torna-se a matéria prima de uma autobiografia imaginária de grande impacto literário e é o pretexto para um romance que, tendo como referência histórica as tensões entre mundos culturais do século XVI, faz pensar nas feridas abertas em nosso mundo contemporâneo.  É nelas que o leitor é levado a refletir ao percorrer as quatro grandes seções em que o autor divide seu livro, e que Maalouf intitula o livro de Granada; o livro de Fez; o livro do Cairo e o livro de Roma, em alusão aos quatro mundos em que a vida de Hassan al-Wazzan/Leão o Africano, sucessivamente, se enraíza e se desenraiza.  

Ao final do livro, Maalouf põe na boca de seu personagem suas próprias convicções e experiências, ao fazê-lo dirigir-se assim a seu filho, numa espécie de posfácio ao livro: 

"Brancos minaretes de Gamarth, nobres ruínas de Cartago, é à sua sombra que me espreita o esquecimento, é em sua direção que minha vida segue à deriva, depois de tantos naufrágios. O saque de Roma depois do castigo do Cairo, o fogo de Tombuctu depois da queda de Granada:  será a desgraça que me chama ou serei eu quem chama a desgraça?”

“ Uma vez mais, meu filho, sou levado por esse mar, testemunha de todas as minhas errâncias, e que agora te escolta em direção a teu primeiro exílio.  Em Roma, eras ‘o filho do Africano’; na África, serás ’o filho do rouni’.  Onde quer que estejas, muito quererão esquadrinhar tua pele e tuas orações.  Cuida-te de não adular seus instintos, meu filho, cuida-te para que não te curves diante da multidão!  Muçulmano, judeu ou cristão, é preciso que te aceitem pelo que és, ou te perderão.  Quando o espírito dos homens te pareça estreito, dize a ti mesmo que a terra de Deus é vasta, e vastos são Suas mãos e Seu coração. Não hesita nunca em afastar-te, para além de todos os mares, de todas as fronteiras, de todas as pátrias, de todas as crenças.”

“Quanto a mim, eu já cheguei ao final de meu périplo, e não tenho outro desejo senão o de viver, em meio aos meus, jornadas longas e pacíficas.  E de ser, entre todos os que amo, o primeiro a partir.  Para este lugar derradeiro onde ninguém é estrangeiro face à face com o criador.”  (p. 348).  

No livro, há uma única alusão à epilepsia, tão marginal à trama do romance quanto expressiva quanto ao lugar da doença no imaginário e nas práticas sociais.  Nela o autor se refere às falsas crises epiléticas dos mendigos da Praça dos Prodígios, como seu amigo Haroum chamava a praça de Fez, onde os dois  meninos aprenderam a ler o mundo:

“’Hoje é sexta feira, a escola está fechada, mas as ruas estão abertas e os jardins também. Pega um pedaço de pão e uma banana e, depois, encontra comigo no final da rua ladeada de árvores.’”

“Naqueles dias, só Deus sabe o número de nossas caminhadas. Muitas vezes, começávamos o passeio na Praça dos Prodígios.  Não sei se este era, de fato, seu nome, mas era assim que Haroum a chamava.  Ali, não havia para nós nada a comprar, nada a colher, nada a comer.  Mas havia muito a olhar, muito a absorver, muito a escutar.”

Em primeiro lugar, os falsos enfermos. Alguns fingiam ser vítimas do grande mal, seguravam suas cabeças com as duas mãos, agitavam-nas com força, deixavam pendentes lábios e mandíbulas, depois caíam e se debatiam pelo chão com tanta perícia que nunca se arranhavam sequer, e nunca derrubavam a gamela que tinham perto de si para receber as esmolas.  Outros fingiam ter cálculos, e gemiam sem parar, fingindo dores atrozes, a menos que os únicos espectadores fossemos Haroum e eu.  Outros ainda expunham aos olhos dos passantes feridas e pústulas.  Eu, bem depressa, virava de costas, pois haviam me dito que era suficiente fixar nelas os olhos para ser contagiado.” (p. 113)

Se, por um lado, o livro como um todo permite a seus leitores descobrir a complexa história do século XVI através da vida de Hassan al-Wazzan, muçulmano, “circuncidado pelas mãos de um barbeiro e batizado pelas mãos de um papa” (p. 9) e transformado em João-Leão de Médicis, por outro, a discreta menção à epilepsia revela o lugar do simulacro da doença no circo de horrores da cidade, evita chamá-la por seu nome ao utilizar o eufemismo grande mal  pelo qual era conhecida e descreve suas manifestações características, e seu poder de despertar o medo e a piedade dos passantes, como parte da pantomima dos falsos enfermos que mendigavam em Fez. 

Margarida de Souza Neves
Coordenadora da equipe de pesquisa
Junho de 2007

 

GUIMARÃES ROSA, João. Grande Sertão: Veredas. (19ª edição). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. (624 pps. Ilustrações de Poty nas solapas da 1ª edição, retomadas nesta edição.)


Se vivo fosse, João Guimarães Rosa completaria 100 anos em junho de 2008. E o tempo, matéria e forma de sua narrativa, sempre oferece surpresas em sua escrita.

As mais de 600 páginas de seu livro Grande Sertão: Veredas, publicado em 1956, reservam para o leitor uma inesquecível aventura estética e lingüística. Pela voz de Riobaldo, que ao longo da narrativa ganha os cognomes de Tatarana, e de Urutú- Branco, os que ousam adentrar este livro, que, como o Liso do Sussuarão, é simultaneamente de impossível e de ineludível transposição, se deparam com um universo único de vida e de morte, pautado pelo medo de amar e pela força avassaladora do amor; pelas crenças gêmeas em Deus e no Demônio; pelos caminhos e descaminhos físicos e simbólicos de um sertão que está em toda parte; pela poesia mais pura e pela dura tragédia de cada vereda. Porque, como o autor não cessa de lembrar a seu leitor pelas palavras de Riobaldo, viver é muito perigoso.

Guimarães Rosa era médico, formado pela Faculdade de Medicina da, então, Universidade de Minas Gerais. E, entre as muitas dimensões do homem humano presentes em seu livro estão, também, a saúde e a doença. Ainda que não seja mencionada por sua designação clínica, há no multifacetado universo de Grande Sertão: Veredas duas alusões inconfundíveis à epilepsia do jagunço Zé Vital.

A primeira é a crise sofrida durante o cerco dos hermógenes à Casa dos Tucanos, ocasião em que o bando de Riobaldo e Diadorim ainda era chefiado por Zé Bebelo, quando, depois da matança de companheiros como o Acrísio, o Berósio, o Cajueiro, o Quim Pidão e do massacre dos cavalos no curral, Zé Vital sofre o acesso feioso , narrado com riqueza de detalhes na anamnese e no diagnóstico rústico:

"A resto, um Zé Vital deu ataque: o qual era um acesso sacramentado de feioso, principiando depois que ele se queixava de sentir o nariz quente, ele mesmo já sabia a data – e daí proclamava um grito de porco com frio, e caia estatelado no chão, duro como um cano de arma; mas atanazava batendo com os braços e pernas, querendo às ânsias coisa ou criatura em que se agarrar, o onde esbugalhava os olhos, a boca espumada, escumando. Se disse: _ ‘Isto é doença velha pertencida, isto não é fato de guerra...’ Acesso que passava a estado meio semi-morto, num vago _ pois deitaram o Zé Vital numa canastra de couro." (p. 369)

A segunda crise de Zé Vital ocorre quando o bando está arranchado na Coruja, um retiro taperado, para os lados das Veredas-Mortas, e sua inclusão na narrativa parece ter a função de sublinhar o tempo parado, rompido apenas pela monótona repetição do já vivido, seja a crise do jagunço epilético, seja a morte inglória de Gregoriano por picada de jararaca traiçoeira, sejam as horas mortas do acampamento onde os jagunços se recuperam das febres e esperam melhores condições para seguir viagem sob as ordens de um Zé Bebelo que sempre adia a retomada do caminho:

"Só dizendo que tínhamos de esperar mesmo ali, até que os adoecidos sarassem. Assim em impossibilidades. Tudo o que acontecia era a má sorte. Não digo por um Zé Vital, que tornava a dar ataque, dos de entortar a boca escumante e se esbracejar e espernear com madeira de braços-e-pernas que de quem eram." (p. 420)

Precipitada pela tensão de um combate ou manifestada em tempos de calmaria, a epilepsia se apresenta, também, entre os jagunços da saga sertaneja narrada por Guimarães Rosa.

Uma terceira alusão à epilepsia, mais sutil, aparece no momento culminante do livro, quando o bando dos Hermógenes se enfrenta na guerra final com os comandados de Riobaldo, no campo de batalha da única rua do arraial do Paredão.

Por sugestão de Diadorim, Riobaldo salta da trincheira cavada na terra enlameada pela chuva da véspera, e, depois de atravessar os quintais das casas abandonadas, chega ao único sobrado do povoado debaixo de uma saraivada de tiros, vê cair morto ao seu lado, acertado na testa, Jiribibe, o menino bom, sobe a escada-de-redor e assume o posto de comando, postado nos janelões do segundo andar da casa. De lá, tudo alcança com a vista, atira e derruba a muitos com sua pontaria certeira, e pensa no que não chegou a dizer a Diadorim na véspera, de noite.

De sua atalaia no sobradão, Riobaldo viu e reconheceu Hermógenes, homem que se desata, no bando inimigo. Do lado de seus homens, viu Diadorim a vir – do topo da rua, punhal em mão, avançar – correndo amouco... Viu o diabo na rua, no meio do redemunho. E viu Diadorim cravar e sangrar o Hermógenes. E, de repente, não vi[u] mais Diadorim.

A certeza da morte de Diadorim é mais forte que as forças do Urutú-Branco, e Riobaldo trespassou. Guimarães Rosa assim faz seu herói narrar o momento em que voltou a si do desmaio:

“Conforme conto.  Como retornei, tarde depois, mal sabendo de mim, e querendo emendar nó no tempo, tateando com meus olhos, que ainda restavam fechados.  Ouvi os rogos do menino Guirigó e do cego Borromeu, esfregando meu peito e meus braços, reconstituindo, no dizer, que eu tinha estado sem acordo, dado ataque, mas que  não tivesse espumado nem babado.  Sobrenadei.  E, daí, não sei bem, eu estava recebendo socorro de outros – o Jacaré, Pacamã-de-Presas, João Curiol e o Acauã -: que molhavam minhas faces e minha boca, lambi água.  Eu despertei de todo – como no instante em que o trovão não acabou de rolar até o fundo, e se sabe que caiu o raio...” (p. 612)

O menino Guirigó e o cego Borromeu não apenas socorrem e reanimam Riobaldo, mas o primeiro que lhe dizem é que ele tinha dado ataque, sim, mas não tinha espumado nem babado. Ou seja, ao contrário do que sucedera com o jagunço Zé Vital, seu ataque não era a manifestação de doença velha pertencida, mas sim fato de guerra. Nonada...
 

Margarida de Souza Neves
Coordenadora da equipe de pesquisa
Fevereiro de 2008.

 

NASSAR, Raduan. Lavoura Arcaica. São Paulo: Companhia das Letras, 2006 (3a.ed.)


Filho de pais libaneses, Raduan Nassar é paulista de Pindorama. 

Formou-se em filosofia em 1963 e após um período de viagens à Europa e ao Líbano, funda, juntamente com seus irmãos, o Jornal de Bairro  onde permanece escrevendo até 1974.  Publicou nesse periódico os  contos ”Menina a Caminho” e “Aí pelas três da tarde “ (1972). Este último conto poderá, também, ser encontrado  no jornal Folha de São Paulo do dia 21 de janeiro de 1989.

Nassar publicou somente dois livros, ambos premiados.

Sua primeira obra foi Lavoura Arcaica, editada pela José Olympio em 1973, que ganhou os prêmios Coelho Neto, da Academia Brasileira de Letras e Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro. Foi, também, traduzida para o espanhol e para o francês, publicadas, respectivamente, pela  Alfaguara (1982)  e pela  Gallimard (1982).

O outro livro de Nassar, Um Copo de Cólera” (1978), recebeu o prêmio de Ficção Revelação de autor da Academia Paulista de Críticos de Arte.

Desde então, não escreveu mais, apesar dos inúmeros apelos. Optou pela vida rural, e vive numa fazenda do interior de São Paulo, dedicado à avicultura.

O livro Lavoura Arcaica é composto de duas partes: A partida e O retorno.

Na primeira parte o autor relata, numa linguagem muito particular e sempre elegante, as lembranças e os conflitos pessoais vividos por André, principal protagonista do livro, filho rebelde que abandonara sua numerosa família rural, não só porque se sentia asfixiado por sua estrutura patriarcal, pela rigidez moral de caráter religioso e bíblico. Envergonhava-se, também, com a descoberta de ser um epilético, mas - e principalmente - porque se percebia  incapaz de controlar  sua paixão pela irmã, Ana.

Pedro seu irmão mais velho, respondendo ao apelo da mãe, sai em busca  de André.  Encontra-o numa pensão, atordoado por suas memórias e pelo excesso de vinho.  Consegue, entretanto, convencê-lo a voltar para a família, para os rituais das refeições diárias, sempre presididas pela figura autoritária do pai. 

Mas o retorno de André ao lar vai tornar visível a precariedade da união familiar. Lula seu irmão caçula, lhe confessa sua infelicidade e a intenção de, também, querer abandonar a fazenda. Ao mesmo tempo uma aparente paz parece reinar no carinhoso acolhimento dado a André, na alegria de todos com a organização da festa de boas vindas. 

Entretanto essa comemoração será marcada pela tragédia.  O pai ao perceber o amor incestuoso existente entre os irmãos acabará matando sua filha, Ana.

O narrador revela as tragédias do livro de uma maneira muito particular, quase silenciosa, sempre por meias palavras, pelo não dito. Entretanto coloca explicitamente o seu sofrimento, a tragédia que, para ele, significou a descoberta de ter epilepsia.

Na passagem em que seu irmão Pedro o visita na pensão e tenta convencê-lo a voltar à casa paterna , André rompe o seu resistente silêncio  com as seguintes palavras:

“...eu sou um epiléptico, fui explodindo, convulsionado mais do que nunca pelo fluxo violento que me corria o sangue “um epiléptico” eu berrava e soluçava dentro de mim, sabendo que atirava numa suprema aventura ao chão, descarnando as palmas, o jarro da minha velha identidade elaborado com o barro das minhas próprias mãos,e me lançando nesse chão de cacos, caído de boca num acesso louco eu fui gritando ‘você tem um irmão epiléptico, fique sabendo, volte agora para casa e faça essa revelação, volte agora e você verá que as portas e janelas lá de casa hão de bater com essa ventania ao se fecharem e que vocês, homens da família,carregando a pesada caixa de ferramenta do pai, circundarão por fora a casa encapuçados,martelando e pregando com violência as tábuas em cruz contra as folhas das janelas, e que nossas irmãs de temperamento mediterrâneo e vestidas de negro hão de correr esvoaçantes pela casa em luto e será um coro de uivos (...) elas hão de amontoar-se num só canto e você grite cada vez mais alto ”nosso irmão é um epilético, um convulso, um possesso” e conte também que escolhi um quarto de pensão pros meus acessos e diga sempre “nós convivemos com ele e não sabíamos, sequer suspeitamos alguma vez” e vocês podem gritar num tempo só ”ele nos enganou” (...) “é triste que ele tenha o nosso sangue, uma peste maldita tomou conta dele” e grite ainda ”que desgraça se abateu sobre a nossa casa” e pergunte com furor mas como quem puxa um terço ”o que faz dele um diferente?” e você ouvira um coro (...) ”traz o demônio no corpo” (...) ”traz o demônio no corpo”...  (pp. 39 - 40)

A desesperada confissão de André de ter-se descoberto como um epilético, como  se denomina, parecia significar, para ele, a percepção da perda de uma determinada visão de si mesmo, de uma identidade que havia construído ao longo da sua vida e se reconhecer, a partir de então, como a vergonha da família porque seria um homem que trazia no corpo, através da doença, o próprio demônio, capaz de  contaminar o sangue da sua família.

 

O personagem de André ao se identificar como um epilético confunde-se com a própria doença. Esta aparece no texto narrativamente associada às idéias de desgraça, de luto, de vergonha, de peste, de demonização, de repulsa e isolamento.

 

Encontramos ainda, no livro, mais uma referência à epilepsia quando André, mergulhado nas suas reflexões, afirma para si mesmo:

 

“...era eu o irmão acometido, eu, o irmão exasperado, eu, o irmão de cheiro virulento, eu, que tinha a baba derramada do demo” .. (p. 108)

 

“...eu, o epiléptico, o possuído, o tomado, eu, o faminto, arrolando na minha fala convulsa a alma de uma chama, um pano de Verônica e um espirro de tanta lama, misturando no caldo deste fluxo o nome pervertido de Ana”... (p. 110)

O texto aponta, novamente, para a representação da epilepsia como uma doença asquerosa e demoníaca. Mas propõe, também, a idéia de contaminação, de atração maligna.

 

A percepção de André da epilepsia, contruída por Nassar, como sendo uma possessão demoníaca pode ser considerada um elemento, um fio de uma história que se tece na tradição cristã.   Lavoura Arcaica parece sugerir uma versão invertida da parábola do filho pródigo.

Heloisa Serzedello Correa
Pesquisadora
Fevereiro de 2008.


 

©Portinari

Uma História Social da Epilepsia
no Pensamento Médico Brasileiro

História - PUC-Rio