A epilepsia na
ficção literária
A Epilepsia
em Cordel
Augusto dos ANJOS. A um epilético
Machado de ASSIS. O Alienista.
Mia COUTO.
A varanda do frangipani
Alev Lytle CROUTIER.
Los palacios de la memoria
Fiódor DOSTOIÉVSKI. Os Irmãos
Karamázov
Gustave FLAUBERT. Madame Bovary
Sylvio FLOREAL. “No outro lado da
vida: um dia no Hospício de Juqueri.”
Amin MAALOUF. Léon l’Africain.
Gabriel Garcia MÁRQUEZ. O Outono
do Patriarca
Michel de MONTAIGNE.
Ensaios
Raduan NASSAR.
Lavoura Arcaica
Arthur PHILIPS.
Praga
Guimarães ROSA. Grande Sertão:
Veredas
Érico VERÍSSIMO.
O tempo e o vento, parte II: O Retrato, vol.2.
Érico VERÍSSIMO.
Olhai os lírios do campo.
Gustave FLAUBERT. Madame
Bovary. (tradução de Araújo Nabuco). São Paulo: Ed.
Martins Fontes, 1971.
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Capa da primeira edição de
Mme. Bovary, 1857. |
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Caricatura de Lemot, intitulada Autópsia de Mme.
Bovary, de 1869.
“Extraordinário!... – Comentou o
farmacêutico. – Mas é muito possível que os abricós
hajam ocasionado a síncope!” (p.158)
Homais referia-se ao que talvez houvesse
ocasionado a perda de sentidos em Ema Bovary: a
influência de determinados aromas. Em silêncio,
Carlos, o marido, tentava se recompor do impacto causado
pela cena que acabava de presenciar: após soltar um
grito, Ema, sua pobre mulher, caiu ao
solo, de bruços; a filha, Berta, assustada,
chorava, clamando pela mãe; Felicidade, a criada,
desapertava as roupas da ama, que tinha
movimentos convulsivos pelo
corpo.
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Após
saber de Carlos que o episódio ocorrera de repente
durante a refeição da tarde, Homais seguia no
diagnóstico: “[...] Seria mesmo um belo tema para
estudos, tanto sob o aspecto patológico como sob o
aspecto fisiológico”. E aproveitava para exprimir
todo seu anticlericalismo: “os padres conhecem-lhe a
importância, eles que sempre misturavam os aromas em
suas cerimônias. É para entorpecer o entendimento e
provocar êxtases – coisa aliás, fácil de obter entre as
mulheres, mais delicadas que nós. Citam-se muitas que
desmaiam ao cheiro de chifre queimado, de pão quente...”
(idem)
O
farmacêutico, ignorando Carlos que, preocupado em zelar
pelo sono de Ema – que a essa hora dormia imóvel
e pálida como uma estátua de cera, mantendo,
contudo, as mãos hirtas –, pedia silêncio,
entusiasmava-se:
“E não
só os homens [...] estão expostos a essa coisa,
mas também os animais. Assim, o senhor conhece o efeito
singularmente afrodisíaco que produz a Nepea cataria,
vulgarmente chamada de erva-de-gato, na espécie felina;
por outro lado, para citar um exemplo, que lhe seguro
autêntico, Bridoux (um de meus velhos colegas,
atualmente estabelecido na rua Malpalu) possui um
cachorro que cai em convulsões,
mal lhe chegam perto uma tabaqueira. Muitas vezes mesmo,
Bridoux faz experiências na presença de seus amigos, em
seu simples pavilhão de Bois Guillaume. Acreditar-se-á
que um simples esternutatório possa ocasionar tais
efeitos em um quadrúpede? É extremamente curioso, não é
verdade?” (idem)
O “sim”
distraído de Carlos não abalou Homais:
“-
Isso nos prova [...] as
irregularidades sem número do sistema nervoso. No
que toca à sua senhora, ela sempre me pareceu,
confesso-o, uma verdadeira sensitiva. Eis porque não lhe
aconselharia, meu bom amigo, nenhum desses pretensos
remédios que, sob o pretexto de atacarem os sintomas,
atacam o temperamento. Não, nada de medicamentos
inúteis! Regime, eis tudo!” (idem)
A essa
altura, Ema delirava e nenhum dos que ali miravam aquela
mulher sobre a cama que, mesmo tendo as pálpebras
cerradas, deixava escapar duas torrentes de
lágrimas que deslizavam lentamente sobre o
travesseiro, fazia idéia do que havia ocorrido. Com
sua pena delicada, Flaubert nos oferece, mais adiante,
as reais causas do quadro apresentado por Srª Bovary...
Inaugurando sua carreira como romancista com Madame
Bovary, Gustave Flaubert (1812-1880), escritor que
após sofrer forte censura do governo francês, tendo sido
inclusive levado à Corte Correcional, construiu uma
carreira de destaque em seu país, tornando-se um dos
maiores nomes do Realismo. O autor em nenhum momento
utiliza o termo epilepsia ou crise epilética em sua
narrativa, ou através do farmacêutico, para descrever o
mal-estar sofrido por Ema Bovary. Contudo, esse trecho
nos permite encontrar, nos
interstícios do não dito,
uma clara alusão à sintomatologia da doença.
Primeiramente, alude à antiga crença de que uma
substância de odor muito ativo pode provocar crises no
indivíduo com epilepsia, era prática comum entre os
antigos romanos forçar os escravos a cheirar azeviche
para ver se sofriam da moléstia. É interessante também
destacar que Flaubert sofria da doença e, sendo filho e
irmão de médicos, não causa estranheza o fato de
caminhar tão confortável pelos argumentos médicos não só
nesse trecho, bem como em todo o romance. Nesse sentido,
convém notar que Carlos Bovary é médico; Homais,
farmacêutico; Canivet e Larivière, personagens com
breves aparições, são cirurgiões. Todos, não raro,
descrevem ou são descritos em suas práticas. Outro
destaque é que, na construção do diagnóstico para provar
as irregularidades sem número do sistema nervoso,
o farmacêutico recorre ao exemplo de crises sofridas por
um cachorro, dessa forma, mesmo que indiretamente,
animaliza a doença e o doente. Por fim, cabe aqui o
lembrete de que Homais estava totalmente equivocado em
seu diagnóstico. O motivo da síncope de Ema era
de outra natureza. Curiosos? Leiam o romance e
descubram.
Outubro de 2009 |
Sylvio FLOREAL. “No outro lado da vida: um dia no
Hospício de Juqueri.” IN: COSTA, Flávio Moreira da
(org.). Os melhores contos de loucura. Rio de Janeiro:
Ediouro, 2007.
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Sylvio Floreal é pseudônimo de Domingos Alexandre
(1862-1929), que foi pedreiro, passou pela política
operária da época e se tornou jornalista, cronista e
romancista. Literato atípico, escreve sobre
Os Vícios, Misérias e Esplendores da Cidade de São
Paulo, e permite identificar o lado noturno da cidade
que, na década de 1920, quer
construir para si mesma a imagem de cidade
progressista e capital intelectual do modernismo
brasileiro.
A crônica de Floreal selecionada para figurar no livro
organizado por Flávio Moreira da Costa publicado em 2007
e que tem os mais diversos contos sobre a loucura, trata
das precárias condições de vida dos internos do Hospício
Juqueri por volta da década de 20 do século XX. Foi
publicada originalmente nou livro de crônicas Ronda
da meia noite, de 1929 e reeditado em 2003, cujo
tema é a vida em São Paulo e as suas transformações no
começo do século XX. Nas crônicas desse livro, o autor
usa o gênero reportagem, que começa a ganhar campo nessa
época.
Floreal aborda, nesse texto, um dia que passou no Hospício
de Juqueri, no estado de São Paulo. No momento em que o
autor narra a sua entrada no Hospício e a visão que tem
dos doentes, comenta:
“E o
deboche da loucura, a pornéia da demência, finaliza, no
negror dessa noite pressaga, entre últimos
magotes lusco-fusco de
epiléticos, teorias fulvas de danados agressivos,
bandos verde-negro, luciferinos, de furiosos, tatalando
os dentes numa ronda ameaçadora de destruição.” (p.375)
Há, nas colônias, enfatiza o acompanhante de Sylvio,
médicos, engenheiros, freiras, padres, médicos. Há,
também, um jornalista. No momento que entra em uma das
colônias, lugar que serve para manter os loucos o mais
distante possível da rotina de um hospício, onde eles
possam ter a ilusão de liberdade, ele narra:
“Os
olhos – janelas por onde as suas loucuras espiam para o
mundo – são todos estriados de listras sanguinolentas, e
com os globos fora das órbitas; parecem órgãos que, não
tendo podido enlouquecer, procuram fugir do corpo em que
estão encarcerados.” (p.378)
Há, ainda, uma ala separada para as mulheres, exclusivamente
feminina. Quando entra aí, ele diz:
“A
mulher louca impressiona mais do que o homem.
Quis o acaso [...] que eu
presenciasse uma cena comovedora de epilepsia. A doente,
uma moça forte, com os seus traços de beleza ainda não
deformados pela enfermidade, rola por terra e, aos
estremeções e contrações nervosas, debate-se
horrivelmente por espaço de alguns minutos. Presenciei
esse fenômeno desagradável e saí a convite da pessoa que
me acompanhava [...]” (p.380)
Nesse
momento, o autor, ainda que possa não ter consciência
disso e não ter essa intenção, absorve e manifesta muito
dos preconceitos e da ignorância para com as pessoas que
têm epilepsia, próprios não só da sua época, mas ainda
muito presentes até os nossos dias. O autor faz isso
seja quando naturaliza a internação da moça como doente
mental, o que é uma manifestação de ignorância comum por
parte da medicina da época, pois a epilepsia, hoje
sabemos, é uma síndrome e não uma doença mental;
manifesta preconceitos fortíssimos quando diz que a
mulher tem seus traços de beleza “ainda não
deformados pela enfermidade”, e demonstra uma
compreensão da epilepsia como algo que degenera, que
acaba com a pessoa e até com a sua aparência. Depois,
ele manifesta a opinião da maior parte das pessoas que
presenciam uma crise de epilepsia, o susto, quando diz
que ela “debate-se horrivelmente” e que aquele é
um “fenômeno desagradável”, ainda que, no começo
do trecho, ele tivesse afirmado que aquela tinha sido
uma “cena comovedora”. Tanto ele acha que aquela
moça vai ser desgastada, acha aquilo horrível, quanto
lhe desperta pena, lhe comove.
Esse
tipo de reação é muito comum de ser encontrada tanto em
relatos de época quanto nos contemporâneos, uma vez que
a crise de epilepsia pode ser uma cena, realmente, muito
forte e impactante. No entanto, mesmo que desperte
alguma comoção, isso não impede que se isolem os
chamados epiléticos e que os tratem como pessoas que não
podem participar do convívio social e que têm sua vida
desgraçada pela síndrome, enquanto a sua desgraça pode
ser vista como a própria exclusão promovida pela
sociedade.
“A
loucura até parece uma desgraça inteligente, uma
infelicidade genial, porque começa a devastar o paciente
naquilo que ele tem de mais perfeito e útil – a cabeça.
[...] Fora, o Sol, que tem hábitos democráticos de dar a
sua luz gratuitamente a todos os mortais, envolvia em
ouro quente o Hospício, como a querer iluminar, num
gesto de suprema piedade, a razão imersa em trevas de
todas aquelas criaturas humanas.” (p. 378 – 381)
Aline dell´Orto Carvalho
Bolsista de IC
Dezembro de 2008 |
Mia COUTO. A varanda do
frangipani. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
(147 pps.)
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Mia Couto é um escritor moçambicano bem conhecido no
Brasil. Seus livros anteriormente aqui publicados, O
último vôo do flamingo; Um rio chamado tempo, uma casa
chamada terra; O outro pé da sereia e Terra sonâmbula
tiveram uma excelente aceitação do público leitor e da
crítica. Dono de uma linguagem muito própria, este
escritor que também é professor e biólogo, aprofunda as
raízes de sua escrita nas tradições e nos impasses da
sociedade moçambicana, em seus livros sempre
esquartejada entre a memória ancestral e os desafios do
mundo contemporâneo.
O surpreendente enredo deste livro narra a história do
inspetor Izidine Naíta, que recebe a missão de
investigar o assassinato de Vasto Excelêncio, diretor de
um asilo de velhos instalado na Fortaleza de São
Nicolau, bastião que assistira aos horrores da guerra da
independência de Moçambique. Ocorre que Naíta chega à
fortaleza com seu corpo habitado por um xipoco, o
espírito de Ermelindo Mucanga, um operário morto quando
trabalhava nas obras de restauração da Fortaleza de São
Nicolau durante a guerra e cuja alma não tivera descanso
pelo fato de Mucanga ter morrido longe dos seus e, por
isso, não ter tido os ritos fúnebres da tradição de sua
terra.
Naíta interroga os velhos do asilo, o malungo (branco)
Domingos Mourão, que já não se sente português, mas
nunca será africano; Navaia Caetano, o velho-criança; o
pequenino Nhonhoso e a feiticeira Nãozinha, bem como a
enfermeira Marta Gimo, que lhe contam histórias
fantásticas e incongruentes. Na varanda da fortaleza, o
frangipani de flores perfumadas desafia o vento e olha o
infinito do horizonte. Sob sua sombra, o Halakavuma,
também conhecido como pangolim, uma espécie de tatú
comedor de formigas que os antigos acreditam habitar os
céus e descer de quando em vez à terra para comunicar-se
com os guardiões da tradição, vai deixando suas escamas
premonitórias.
O livro não menciona a epilepsia, mas, no capítulo
intitulado Revelação, o transe em que a feiticeira
Nãozinha faz sua profecia é assim narrado:
“As
palavras pareciam sair-lhe não da boca mas de
todo corpo. Enquanto
falava ela sofria convulsões, escorriam-lhe
babas pelo pescoço. Até que a feiticeira se
enclavinhou, em espasmo. Todos se
suspenderam, ávidos pela palavra que se seguia:
- Cuidado! Vejo sangue!
- Sangue!?, se espantou o polícia.
- Eles virão aqui. Virão para lhe matar.
- Matar-me? Quem me vai matar?
- Eles virão amanhã. Você já está perdendo a
sombra.
Nãozinha acelerava o transe. Era como se o corpo
dela se animasse de viva labareda.
- Amanhã será. O assassino eu o estou a ver.
[...] Izidine: você se meteu na casa da abelha.
Esta fortaleza é um depósito de morte.” (p.
135)
Na descrição do transe
da velha nyanga, toda a sintaxe da crise epilética
aparece de forma inequívoca, e remete às associações
ancestrais entre a epilepsia e o transe em que os
oráculos são emitidos, aparentemente também presentes
nas tradições africanas.
Margarida de Souza Neves
Coordenadora da equipe de pesquisa
Novembro de 2007 |
Augusto dos Anjos.
"A um epilético" IN Eu, e Outras Poesias.
Virtualbooks Literatura Brasileira
(http://virtualbooks.terra.com.br/freebook/
freebook_portugues1.htm, acesso em 30/04/2006)
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A um
epilético
Perguntarás quem sou?!
– ao suor que te unta,
À dor que os queixos te arrebenta, aos trismos Da
epilepsia horrível, e nos abismos
Ninguém responderá tua pergunta!
Reclamada por negros magnetismos
Tua cabeça há de cair, defunta Na aterradora
operação conjunta Da tarefa animal dos
organismos! Mas após o antropófago alambique
Em que é mister todo o teu corpo fique
Reduzido a excreções de sânie e lodo,
Como a luz que arde, virgem, num monturo, Tu hás
de entrar completamente puro
Para a circulação do Grande Todo!
Escritor brasileiro do
início do século, Augusto dos Anjos é autor da poesia
acima, destinada aos que sofrem com a doença. Nela, o
ataque é representado de maneira horrível, onde o ser
humano encontra a paz somente ao completar o seu ciclo
de vida na terra, ou seja, ao morrer. O principal
interesse que esta poesia traz para a pesquisa são as
figuras de linguagem utilizadas para representar a
pessoa com epilepsia.
Aderivaldo Ramos de Santana e Leonardo
Martins Barbosa
Rio de Janeiro, 30 de abril de 2006 |
Michel de MONTAIGNE.
“Dos canibais”. IN ENSAIOS. (COLEÇÃO OS
PENSADORES). 3ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1984. pp.
100 - 106. |
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Michel de Montaigne
nasceu na França em 28 de fevereiro de 1533, e fazia
parte da burguesia, uma classe social em ascensão na
época. Formou-se em Direito na Universidade de Toulouse
em 1554, mas não exerceu a profissão de advogado por
muito tempo devido às constantes desilusões com as
instituições jurídicas e as condenações que considerava
criminosa. Tentou carreira na corte de Carlos IX, mas
não gostava do rígido protocolo a ser seguido e
abandonou por completo esta idéia. Após sofrer uma
grande perda em 1574, isolou-se na torre de seu castelo
e por dois anos dedicou-se a escrever os capítulos I e
II do livro Ensaios.
O livro Ensaios é o resultado de várias anotações e
meditações de Montaigne sobre assuntos diversos. Ele
escrevia sobre o mundo a partir de si mesmo e de suas
experiências, e suas idéias não são colocadas em uma
ordem cuja lógica seja imediatamente percebida pelos
leitores, uma vez que utiliza constantemente o recurso
estilístico da contradição e o leitor é levado por
caminhos estranhos e diversos.
O capítulo XXXI, Dos Canibais é um ensaio em que
Montaigne escreve sobre a descoberta do Novo Mundo, ao
qual se refere como a França Antártica, e sobre seus
habitantes. Para Montaigne, esse mundo é perfeito, e
representa a volta à idade de ouro das primeiras
civilizações.
Em um trecho na página 102 da edição aqui utilizada,
Montaigne passa a descrever como é este Novo Mundo e as
pessoas que o habitam:
“A região em que esses povos habitam é de resto muito
agradável. O clima é temperado a ponto de, segundo
minhas testemunhas, raramente se encontrar um enfermo.
Afirmaram mesmo nunca terem visto
algum epiléptico, remeloso, desdentado ou curvado pela
idade.”.
A alusão à epilepsia é incidental e absolutamente
secundária na obra, mas reforça o argumento do autor. No
trecho, a epilepsia é diretamente associada a algo ruim,
feio e imperfeito, coisas tão freqüentes no mundo de
Montaigne e que nesta nova terra que o autor idealizava
não poderiam existir.
Samantha Valério Parente
Souza
Bolsista de Iniciação Científica
Rio de Janeiro, 16 de maio de 2005
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Alev Lytle CROUTIER.
Los palacios de la memoria. Barcelona: Grijalbo
Mondadori, 2000. (309 pps.)
Título original em inglês: Seven houses.
Até fevereiro de 2005 não existia tradução em português
do livro. |
Alev Lytle Croutier
nasceu na Turquia, estudou literatura em Estambul e
vive, atualmente, entre os Estados Unidos e a França,
paises em que é reconhecida como romancista e
roteirista.
O livro relata a saga das mulheres de uma família turca
entre 1910 e o início do século XXI, e entrança a
história dessa família ficcional com a história da
modernização da Turquia. É uma história de perdas, de
reconstruções, de nostalgia, de força e de sensibilidade
e a autora transforma em narradores do relato as
diversas moradias que abrigaram a família, do palácio
comprado em Esmirna no ano de 1910 por Esma - a primeira
e trágica heroína do livro - aos impessoais apartamentos
do condomínio de Istambul que Âmbar - a neta de Esma -
encontra como morada familiar ao regressar de um
auto-exílio nos Estados Unidos com sua filha Nellie.
O livro traz uma única alusão à epilepsia, e essa alusão
não tem nenhuma importância em relação à narrativa do
romance, ainda que seja expressiva no que diz respeito à
associação da epilepsia ao paroxismo da desgraça humana.
No trecho, Âmbar, de volta a Istambul, visita sua tia
Aída, belíssima em sua juventude, e que um dia havia
sido Miss Turquia e encantado o próprio general fundador
da Turquia moderna, o chefe do partido nacionalista que
se tornara presidente da república turca em 1923, Kemal
Pacha Ataturk . Aida se submetera a uma cirurgia
plástica para recuperar a beleza perdida com a idade,
mas, vítima de um embusteiro, ficara monstruosa.
Âmbar a encontra fechada em seu apartamento quase sem
luz, em companhia de outras sete mulheres desfiguradas,
também elas vítimas do cirurgião embusteiro. As mulheres
conversavam, liam jornais em voz alta e adivinhavam sua
sorte supostamente inscrita no poso que o pó de café
deixava nas xícaras em que bebiam:
“Aída estava
absorta, olhando o poso de café. Uma mulher com a
voz etérea lia em voz alta um jornal enquanto as
demais a escutavam. No início parecia poesia – o tom
o sugeria - , mas as palavras se desintegraram na
história de um homem que tinha cozinhado e devorado
três viúvas. Quando a mulher terminou, as demais
suspiraram e balançaram a cabeça. Outra começou a
ler alto: ‘surdo-mudo
epilético se afoga numa privada rudimentar’.
Liam histórias horríveis e riam das coisas mais
tristes e cruéis.
- Que tipo de festa é essa? – perguntou Âmbar à
mulher que lhe havia aberto a porta ao entrar.
- A festa da depressão – replicou a mulher – Você
não percebe? Tratamos de pensar nas coisas mais
deprimentes. Assim nossos problemas parecem menores
e isso faz que sintamos menos o que aconteceu
conosco.
- Preferimos a escuridão – sussurrou outra mulher
sentada a seu lado – somos mulheres da penumbra.
Formamos a sociedade das mulheres da penumbra. Somos
todas sobreviventes, sempre caímos de pé, como os
gatos.” (p. 253-254)
Nessa passagem, a
epilepsia do surdo-mudo que se afoga em meio à imundície
de uma privada rudimentar, aparece discursivamente
associada de forma direta a “histórias horríveis”, a
“coisas mais tristes e cruéis” e a “coisas mais
deprimentes”. Um dos elementos das notícias dos jornais
sensacionalistas que estampavam em suas páginas o
paroxismo da desgraça, e pareciam fazer Aída e suas
companheiras de infortúnio esquecer seu próprio
sofrimento.
Margarida de Souza Neves
Coordenadora da equipe de pesquisa
2004
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Arthur PHILIPS.
Praga. Romance. Rio de Janeiro: Civili-zação
Brasileira, 2004. (419 páginas).
Título original em inglês: Prague. A novel
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Praga é,
paradoxalmente, um romance que tem como cenário e
personagem principal a Hungria do período imediatamente
posterior à queda do mundo soviético. A trama está
situada em Budapest, no ano de 1991, e o livro pode ser
lido como uma narrativa sobre um grupo de jovens
descolados, norte-americanos e canadenses, que vivem os
impasses de sua geração e o choque entre o mundo
globalizado e as velhas tradições húngaras,
personificadas em um personagem-síntese, Imre Horváth,
herdeiro de uma antiga editora cuja história se
confundia com a história do país ao longo dos séculos
XIX e XX. Se o velho editor, a cidade de Budapest e a
geração dos jovens globalizados são personagens
centrais, a segunda guerra mundial, e seus efeitos
devastadores sobre a velha Europa, também o é.
Praga, a cidade título, aparece apenas no último
parágrafo do livro, como
“(...) uma terra
de torres e palácios de brinquedo e portões pintados
de dourado e pontes com estátuas de olhos tristes
espiando sobre uma água preta enevoada, uma aldeia
de paralelepípedos e vitrais não atingidos por
canhões, e aquele castelo de contos de fadas
flutuando sobre ele, flutuando livre de qualquer
amarra, uma cidade onde certamente qualquer coisa
será possível.” (p.419)
O autor é um
norte-americano de Minneapolis, que morou em Budapest
entre 1990 e 1992 e vive hoje em Paris. Esse é seu
romance de estréia.
A alusão à epilepsia é completamente marginal à trama do
livro, mas nem por isso é menos expressiva. Ela está no
início do capítulo V da segunda parte do livro, dedicada
à saga da Horváth Kiadó, a editora fundada em 1808 e
herdada por Imre.
O Autor faz da marca registrada da editora – uma pequena
pistola no ato de disparar uma bala na qual é possível
ler as letras MK – a metonímia da própria editora e
assim caracteriza a capacidade de adaptação da editora a
novas situações políticas vividas na Hungria e sua
plasticidade ideológica:
“Sob o controle do
filho do primeiro Imre, Károly, a Editora Horváth
logo se especializou em anúncios imperiais dos
Habsburgos e publicações (em húngaro e alemão),
coletâneas de poesia em panfletos e manifestos
políticos anti-Habsburgo, que, nas décadas de 1830 e
1840, proliferaram com fertilidade leporina. Em
1848, o desenho de mau gosto do pai de Károly
disparava na parte inferior de editos governamentais
colados em quiosques, na contracapa de pequenos
volumes de versos de János Arany e em boletins de
educação pública de parlamentares húngaros com
pretensões reformistas. A pequena pistola fumegava
no final de um livreto conciso comemorando o
aniversário do imperador
austríaco retardado e epilético: um Volume em
Honra do Aniversário e Nosso Rei e Imperador,
Ferdinando Habsburgo, Quinto a Levar Esse Soberbo
Nome, Que Possa Reinar por Longo Tempo, e Que Sua
Sabedoria Nos Guie, com as Bênçãos de Deus e para o
Benefício de Todos os Seus Leais Súditos Húngaros
Que Prosperam sob Seu Cuidado Paternal e Generoso.
Mas a bala MK também voava imóvel na última página
de uma coletânea de poemas do
amante-aventureiro-poeta-revolucionário Boldizsár
Kis, intitulada Canções de nascer para o meu país.”
(p. 163).
A epilepsia do
imperador Ferdinando V Habsburgo, associada a seu
suposto retardo mental, aparece como elemento de
desqualificação do monarca austríaco que, então, reinava
sobre a Hungria.
Margarida de Souza Neves
Coordenadora da Pesquisa
2005 |
Fiódor DOSTOIÉVSKI.
Os Irmãos Karamázov. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.
Tradução: Natália Nunes e Otto Maria Carpeaux
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Fiódor
Dostoiévski é considerado um dos maiores escritores
russos de todos os tempos, e esta a sua obra mais
primorosa. Melhor ou não, a verdade é que esta
obra é uma das grandes referências da literatura do
século XIX. Dostoiévski era um profundo cristão e
viveu uma época de grandes contradições na Rússia,
especialmente no que se refere ao contato entre o
oriente e o ocidente e todos os conflitos que foram
produzidos a partir daí. Dostoiévski era um
portador de epilepsia.
O romance se desenvolve em uma aldeia russa em torno do ano
de 1880, época também que o autor a escreveu. A
história gira em torno da relação de um pai, que é
assassinado no meio do romance por um de seus quatro
filhos, que por sua vez são representantes de quatro
personalidades russas bem distintas. É muito
complexo para ser resumido em poucas palavras a relação
destes cinco personagens, basta dizer que Smierdiákov,
que tem uma personalidade fraca e corrompida – com uma
idéia de degradação humana – é também um epilético,
assim como o próprio autor.
A epilepsia é abordada de várias vezes ao longo do
romance, ajudando a construir a personalidade de
Smierdiákov e estando presente inclusive na cena onde
ocorre o assassinato. Decidi transcrever somente o
primeiro trecho em que isto é mencionado, e algumas das
primeiras descrições de Dostoiévski acerca deste
personagem, e portanto o ponto de onde parte Smierdiákov
para sua participação no resto do romance.
“A burra de Balaão não era outro senão o criado Smierdiákov,
rapaz de vinte e quatro anos, pouco sociável e
taciturno, embora não fosse selvagem ou acanhado;
pelo contrário, era arrogante e parecia desprezar todo
mundo. Chegou o momento de falar a seu respeito,
ainda que pouco. Educado por Marfa Ignátievna e
Grigóri Vassílievitch, o garoto, ‘natureza ingrata’,
segundo a expressão de Grigóri, crescera selvagem no seu
canto. Na sua infância, tinha prazer em enforcar
os gatos, enterrando-os depois com grande cerimonial.
Para fazer isto, cobria-se com uma colcha de cama,
imitando uma casula, e cantava, agitando um simulacro de
turíbulo por cima do cadáver.(...)
Grigóri ficou perplexo. O menino olhava seu amo com ar
irônico, seu olhar parecia provocá-lo. Grigóri não
pôde conter-se: ‘Foi daqui que ela veio!’ –
exclamou, esbofeteando-o violentamente. O menino
não se moveu, mas meteu-se de novo no seu canto por
vários dias.
Uma semana depois, ele teve
uma primeira crise de epilepsia, doença que não o deixou
mais dali por diante.(...)” (pg. 138)
“...
Fiódor Pávlovitch decretou logo que tinha ele vocação
para cozinheiro e mandou que fosse aprender sua arte em
Moscou. Passou ali vários anos e voltou com o aspecto
bastante mudado; envelhecido demais para sua idade,
enrugado, amarelecido, parecia um skópiets.
Moralmente, era quase o mesmo de antes da partida;
sempre um verdadeiro selvagem que não procurava a
sociedade.” (pg. 140)
Estes
trechos resumem bem a maneira como Dostoiévski constrói
o personagem. A história se passa no período em
que estamos pesquisando, segunda metade do século XIX,
mas em um lugar radicalmente diferente do Brasil,
principalmente Rio de Janeiro e Bahia. Mas não
deixa de ser interessante a maneira como o autor, sendo
ele um epilético, relaciona o personagem, a doença,
diversas características pejorativas.
Leonardo Martins Barbosa
Bolsista de IC
2005 |
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Gabriel García MÁRQUEZ. O Outono do Patriarca.
10ª ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 260p
Tradução: Remy Gorga Filho
Título original: El Otoño del Patriarca
. |
Além de ser um dos mais conhecidos
escritores colombianos, Gabriel García Marquez é também
um referencial para aqueles que admiram o chamado
realismo fantástico. Através de variadas figuras
de linguagem, exageros, coisas sinistras, absurdas,
exóticas e impossíveis, Gabriel García Marquez
reconstrói diversas realidades sociais, políticas e
culturais da região sul-americana e Caribe. Entre suas
obras encontram-se Cem Anos de Solidão, e Amor
nos tempos do Cólera. Em O Outono do Patriarca,
o autor constrói o tempo de um ditador latino-americano.
Através de uma linguagem maravilhosa, Marquez mostra
como esse tempo é cíclico, sempre se reproduzindo e se
reconstruindo de modo a manter o patriarca no poder. É
uma pesada crítica a regimes ditatoriais que dominaram a
vida política de vários países do continente. Marquez
mostra em seu livro, no entanto, que por mais que se
renove, esse regime chega a seu outono, e cai.
Durante este tempo, há vários momentos de
declínio, gerando a impressão de que o ditador estava em
seu fim. No entanto, no livro isto é sempre uma
impressão e o ditador sempre reaparece até o último
capítulo. Na descrição de um desses momentos de queda e
fragilidade, o autor usa a palavra epilepsia para
construir melhor a imagem desejada:
“Nem mesmo
os menos prudentes nos conformávamos com as
aparências, porque muitas vezes se havia dado por
verdade que
estava
prostrado pela epilepsia e desabava do trono no
curso das audiências torto pelas convulsões e
espumando de fel pela boca,
que havia perdido a fala de tanto falar e tinha
ventríloquos escondidos atrás das cortinas para
fingir que falava, que lhe estavam saindo escamas de
savelha por todo o corpo como castigo por sua
perversão (...) mas quanto mais verdadeiros pareciam
os rumores de sua morte mais vivo e autoritário ele
aparecia quando menos se esperava para impor outros
rumos imprevisíveis ao nosso destino.”
(p.47)
A epilepsia é usada, portanto, para
construir a imagem de um líder que se mostra frágil, sem
força e sem liderança. A epilepsia é usada não para
descrever o personagem em si, mas sim o seu momento. A
epilepsia somente apareceu no seu momento de fraqueza,
enganando aos que imaginavam sua queda. Quando o ditador
estava estável em termos políticos, não apareceu menção
à doença.
Leonardo Martins Barbosa
Bolsista de IC
2006
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Érico VERÍSSIMO. O tempo e o
vento, parte II: O Retrato, vol.2. 3ª. ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2004.
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Érico Veríssimo é um autor de grande
importância para a Literatura brasileira. O autor é
gaúcho da cidade de Cruz Alta e nasce em 1905 , sendo
seu primeiro sucesso o romance Olhai os lírios do
campo. Deu aulas em uma universidade americana e foi
diretor do Departamento de Assuntos Culturais da União
Pan-americana, secretaria da Organização dos Estados
Americanos.
A trilogia O tempo e o vento
termina de ser publicada em 1962. É composta de três
partes (O Continente, o Retrato e O Arquipélago),
cada uma contendo mais de um livro, num total de sete. O
autor, nesta obra, conta a saga da família gaúcha Terra
Cambará ao longo do tempo, atravessando gerações e
mostrando, pelos olhos das suas personagens, não só a
formação do Rio Grande do Sul e de sua população, mas
também as situações políticas que abalaram o país e o
mundo.
Na segunda parte da trilogia, O
Retrato, a personagem principal é Rodrigo Cambará,
filho de um grande estancieiro gaúcho e muito rico.
Médico, letrado, formado em Porto Alegre, amante
incondicional da cultura francesa e da ópera, Rodrigo
tem uma forte tendência a trair a esposa com outras
mulheres. Ao narrar a relação que ele e uma de suas
amantes mantêm, sendo ela a mulher mais importante da
sua vida, Érico Veríssimo relata a intimidade do casal
e, principalmente, a intensidade dos atos sexuais entre
os dois. E é neste momento que aparece uma alusão à
epilepsia:
“No
entretanto, terminada aquela
espécie de luta corporal
que se avizinhava da epilepsia, quando os
dois ficavam lado a lado, numa calma exausta e meio
triste – mais duma vez ele sentira que devia dizer
alguma coisa, fazer alguma promessa, lançar enfim
uma luz sobre o futuro.” (p. 292)
Um fato importante a ser sublinhado aqui
é que, diferentemente dos outros autores que mencionam a
epilepsia, como em alguns exemplos presentes neste
site, Érico Veríssimo se refere à doença
comparando-a a uma sensação que, para a personagem era a
do êxtase do prazer, e que para a sociedade em geral,
apesar de ser imoral por se tratar de um relacionamento
fora do casamento, a sensação em si mesma também é
considerada prazerosa.
E, ainda, a epilepsia é reconhecida,
mais uma vez, pelo descontrole do corpo, pela associação
discursiva com uma luta travada pelo doente contra este
corpo que não lhe obedece, que o autor percebe como
análoga ao embate amoroso e pelo estado de apatia que
segue a crise, que a aproxima da calma exausta e meio
triste que se segue ao ato sexual. As
características que são a expressão mais visível desta
doença, sendo assim as que ficam mais presentes na
representação social da doença, permitem a analogia que
Veríssimo constrói entre a epilepsia e o ato sexual.
Aline dell´Orto Carvalho
Bolsista de IC
Abril de 2007 |
Érico VERÍSSIMO. Olhai os
lírios do campo. 4 ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 2005.
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Olhai os lírios do campo, é a
obra-prima de Érico Veríssimo. Foi publicado em 1938,
num momento em que o Brasil ainda passa por grandes
mudanças e uma intensa modernização. Uma sociedade
preocupada cada vez mais com o consumo e com a ascensão
social toma o lugar da tradicional. Essas mudanças e
avanços na tecnologia, na industrialização do Brasil tem
um marco divisor: a Revolução de 30. Pano de fundo do
livro, a Revolução é também o momento em que ganha de
força aquilo que move a personagem principal do livro: o
desejo pela ascensão social.
A tranqüilidade do mundo rural tão bem
representado na saga O tempo e o vento, o
tradicionalismo sulista, a vida pacata e sossegada era
então substituída pelo turbulento cotidiano urbano. Esse
conflito é muito bem ilustrado nos diálogos montados por
Erico Veríssimo entre as personagens que freqüentam a
casa do sogro de Eugênio, a personagem principal do
livro. O desejo incontrolável de um deles de construir
um arranha-céu em Porto Alegre da época representa bem
essa nova mentalidade.
Antes da Revolução, não havia
universidades no país, o que havia eram faculdades de
medicina, engenharia e direito que, portanto, eram
profissões muito valorizadas num país formado
majoritariamente por analfabetos. Assim, a posição dos
profissionais da medicina era de muito prestígio, como
mostra a historiografia sobre o assunto discutida nas
monografias de Aderivaldo de Santana e de Mariana
Lapagesse, disponíveis na página Produção Acadêmica
deste mesmo site.
Portanto, esse é o ponto central do
livro, manifestado na figura de Eugênio, o jovem e pobre
médico que, desde a infância, tem ambições e sonhos de
enriquecer. Dividido entre o desejo de ajudar os doentes
mais necessitados de assistência médica seguindo o
exemplo de um amigo da sua família humilde, e mudar de
classe social, Eugênio representa um movimento no
sentido de “socialização da medicina”, onde admite-se
que a sociedade a influencia, a “modela”, nas palavras
de José Leopoldo Antunes¹. Mas ele corre atrás dos seus
sonhos, e, para alcançá-los, abdica do amor e da amizade
de Olívia. Também formada em medicina, Olívia é a
personalização de virtudes que o próprio Veríssimo chama
“inumanas”. Sua fé inabalável e a sua aceitação serena
da morte deixam transparecer a estabilidade de um
momento anterior às mudanças modernizadoras pelas quais
o país passa; a ambição de Eugênio se encaixa no segundo
momento. E um se apóia no outro, a passagem não é brusca
e nem definitiva.
No prefácio escrito pelo autor em 1966,
ele destaca a semelhança de Olhai os lírios do campo
com O tempo e o vento e outras obras suas: as
personagens, os conflitos internos, as situações. No
entanto, a semelhança que pretendo destacar aqui é a
utilização da epilepsia como metáfora para sentimentos
ou ações. Em dado momento do livro, ele narra uma
discussão entre um artista moderno e um amante da
pintura renascentista. Cada um defende seu ponto de
vista. Num momento preconceituoso, Acélio Castanho, o
tradicionalista, diz de Diego de Rivera: “Rivera é
pernóstico como todo mestiço.” (p.157) Quando perguntado
pelo pintor Túlio Altamira o que tem arte a ver com cor,
Acélio pensa sobre o assunto - sem, no entanto, mudar de
idéia sobre o pintor mexicano. Segue-se o parágrafo que
diz:
“Eugênio contemplava Acélio Castanho, que lhe parecia
ainda mais pálido que de ordinário. Estava vestido de
escuro e seus olhos negros tinham um brilho de febre.
Sua testa larga e cor de marfim pregueava-se toda de
rugas quando ele ficava a pensar,
de olhos erguidos para o alto,
como numa ausência epilética.
Quando Eunice e Isabel desceram, falava-se do bolchevismo
de Diego de Rivera. Os olhos de Acélio fuzilavam.”
(p.158)
Esse trecho mostra uma comparação feita
por Veríssimo entre a imobilidade no ato de refletir e o
momento de ausência que sucede uma crise epilética. Fala
também sobre o olhar de Acélio, por três vezes: na sua
comparação, afirma que os olhos do doente, provavelmente
durante uma crise epilética, se voltam para o alto, numa
“ausência”; diz, ainda, que, nesse momento, o olhar da
personagem é febril e fuzilador, comparando-o ao do
doente com epilepsia.
Mas o que é mais
interessante reparar é que, como é possível notar nesse
mesmo site, essa não é a primeira vez que
encontramos comparações com a epilepsia nos livros de
Erico Veríssimo. É bem possível que esse fato esteja nos
mostrando que o uso da doença como fator de comparação,
como metáfora era bem comum na linguagem corrente da
época. Ainda que, como nesse caso, não esteja sendo
usado num tom pejorativo em relação àquela personagem a
que se refere, o uso ilustra a repercussão que a doença
tinha na sociedade e a ele se aplica a sugestão de Susan
Sontag de “doença como metáfora”.
¹
ANTUNES, José Leopoldo Ferreira. Medicina, Leis e
Moral: pensamento médico e comportamento no Brasil
(1870-1930). São Paulo: Fundação Editora da UNESP,
1999.
² SONTAG, Susan. Doença como metáfora. São
Paulo: Companhia das Letras, 2007.
Aline dell´Orto Carvalho
Bolsista de IC
Setembro de 2007 |
Machado de ASSIS. O alienista.
Porto Alegre: L&PM, 2006.
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O conto foi editado em
versão Graphic Novel em 2007, por Fábio Moon e Grabriel
Bá, pela Editora Agir
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Machado de Assis (1839–1908) foi um dos
maiores escritores do século XIX brasileiro e é
considerado um dos maiores nomes da nossa literatura.
Entre outros fatores, por ser cronista, contista,
dramaturgo, jornalista, poeta, novelista, romancista,
crítico e ensaísta. Nascido no Rio de Janeiro, filho de
operário português e de uma mulher negra, é criado pela
madrasta, também mulata, por ter perdido a mãe muito
cedo. Entra para o mundo acadêmico por iniciativa e
esforço próprios. Foi um dos fundadores da Academia
Brasileira de Letras. Machado tinha a saúde muito fraca,
era gago e tinha epilepsia.
O conto O alienista, no qual trata
sobre a medicina, a loucura e a internação dos loucos,
deixa transparecer muito claramente o que o autor
pensava sobre certos médicos da época e pelas casas de
internação, ainda que não tenha vivido a experiência de
interno permanente em nenhuma delas. É conhecida sua
resistência a fazer qualquer alusão explícita à
epilepsia (à época muito equiparada à loucura),
utilizando-se apenas de metáforas para tanto.
Neste conto, também não menciona nenhuma vez a doença
que sofria, referindo-se somente à loucura.
O conto narra a história do Dr. Simão
Bacamarte, que introduz com muita pompa e muitos
títulos, como era costume entre os médicos. Ao casar-se,
a escolha da esposa, não se deu pela beleza, juventude
ou habilidades desta, mas por sua saúde perfeita, fato
que permite identificar a fina ironia de Machado em
relação à cientificidade dos médicos do século XIX,
crítica esta que está presente ao longo de todo o conto.
Preocupado com a defesa da sociedade de
Itaguaí, cidade onde vive com a esposa, Dona Evarista,
Dr. Bacamarte resolve fundar uma colônia para
enclausurar os loucos da cidade. Poderia, assim,
aprofundar seus estudos a respeito da loucura. Acontece
que o médico começa a achar que todos os habitantes da
cidade são loucos e interna a grande maioria deles. Há
uma rebelião na cidade contra o alienista, e, nesta
rebelião, os cidadãos e os policiais revelam-se pessoas
volúveis, que mudam de opinião a qualquer argumento.
Quando percebe que quatro quintos da
população estava internada na Casa Verde, como
era chamado o abrigo de loucos, o doutor muda de teoria,
dá alta a todos, e afirma que a loucura é coisa normal e
quem é muito sensato é que deve ser internado. Assim,
começa novamente a sua perseguição àqueles que seriam
internados na sua clínica, prendendo um razoável número
deles. E a população, mais uma vez, ainda que agora ele
estivesse dizendo o contrário do que havia dito antes, o
considera um gênio.
Após curar todos os internos, Simão
percebeu que ele próprio era o mais perfeito de todos, o
que pode ser indicativo da pretensão do médico do XIX, e
merecia ser internado na Casa Verde. Assim, o
alienista interna-se a si próprio, e se dedica a estudar
o próprio caso, morrendo sem chegar a conclusão alguma.
E, ainda que se desconfiasse que o médico tivesse sido
sempre o único louco, o seu enterro foi efetuado com
muita pompa e muita solenidade.
Nota-se, no conto, diversas críticas ao
ego dos médicos, à sua dedicação integral à ciência e a
conseqüente incapacidade de afeto. São constantes e
finamente irônicas as críticas aos asilos para
internação de loucos, que tinham os aposentos dedicados
aos doentes chamados de “cubículos” na narrativa sobre a
Casa Verde, que havia sido construída para o
médico e suas pesquisas, e era preenchida unicamente
conforme os seus critérios pretensamente científicos.
Na narrativa, o Dr. Bacamarte age como quem não deve
satisfação alguma a ninguém que fosse leigo em sua
ciência, e, no entanto, a Casa Verde era chamada
“instituição pública”, uma vez que o médico se
arroga o poder de definir o que é o interesse público. O
alienista mudou de uma teoria à outra, oposta à primeira
que sustentara, e a população nem sequer desconfia que
havia algo estranho nisso, acreditando cegamente nele e
em sua suposta ciência. O barbeiro, que após liderar a
rebelião assume o governo de Itaguaí, a primeira coisa
que faz é propor um acordo ao Dr. Bacamarte para que
eles dois e o povo ficassem felizes sem que fosse
necessário cumprir aquilo que prometera, numa velada
crítica aos governantes da época.
Há inúmeras outras observações a serem
feitas sobre o conto, no entanto, o que interessa a esta
pesquisa são aquelas que tocam a classe dos médicos e
que aqui foram mencionadas. Muito provavelmente, ainda
que o conto possa ser lido como uma metáfora da
sociedade brasileira de sua época, o fato de que o autor
centrasse o conto na figura do Dr. Simão Bacamarte pode
dever-se ao contato inevitável e desagradável que
Machado de Assis devia ter com os médicos que cuidavam
de sua epilepsia com os escassos instrumentos da época
para lidar com esta doença.
Aline
dell´Orto Carvalho
Bolsista de IC
Abril de 2007 |
 |
Amin MAALOUF. Léon l’Africain. Paris: LGF, 1987.
(Coleção Livres de Poche) (348 p)
Existe uma tradução portuguesa do livro, feita por Maria
da Graça Morais Sarmento. (Lisboa: Bertrand, 1994.)
. |
Amin Maalouf (www.aminmaalouf.org
e
www.aminmaalouf.narod.ru) nasceu em Beirute no ano
de 1949 e radicou-se na França desde 1976. É um
romancista reconhecido internacionalmente, ganhador do
prêmio Goncourt em 1993, e algumas de suas obras, em que
ficção e história se entrelaçam, estão traduzidas no
Brasil, como é o caso de O reochedo de Tanios,
O périplo de Baldassare (Companhia das Letras) e
Jardins de Luz (Record). É também ensaísta, e
seus trabalhos mais conhecidos neste gênero são As
cruzadas vistas pelos árabes (1983), ganhador
do prêmio Maison de la Presse, e Identidades
assassinas (1998).
Em Leão, o
Africano, Maalouf se baseia na extraordinária
vida de Hassan al-Wazzan, muçulmano nascido em
1488 na Granada muçulmana, e que se fará conhecido no
Ocidente como Leão, o Africano. O personagem real
tem sua vida atravessada, definida e redefinida pelos
acontecimentos da história de seu tempo: expulso ainda
menino de Granada pela violência da reconquista
e da inquisição, refugia-se com sua família em
Fez, no Marrocos, onde estuda em diversas madrasahs
muçulmanas e torna-se, muito jovem e por ocasião da
morte de um tio, o chefe de uma missão diplomática ao
império Songhai, na época chefiado por Askia Mohammed
Toure. A partir dos 20 anos, Hassan-al-Wazzan
diplomata e grande viajante, percorre todo o
Magreb, a Arábia, a África Sahariana, Constantinopla e o
Egito. No retorno de uma de suas peregrinações à
Meca, em 1518, Hassan é capturado por piratas sicilianos
e, escravizado, e é entregue como um presente ao papa
Leão X, que o adota como filho e o faz batizar como
João-Leão de Médicis. Na corte pontifícia do
renascimento escreverá sua famosa obra,
Cosmographia de Affrica, por encomenda de seu
protetor, o papa, e, em razão dela, passará a ser
conhecido como Leão, o Africano. Em Roma,
novamente no centro dos conflitos de sua época,
assistirá ao saque da cidade pelos soldados do imperador
Carlos V.
Na ficção de Maalouf,
a vida deste homem muçulmano, judeu e cristão; africano
e europeu; oriental e ocidental torna-se a matéria prima
de uma autobiografia imaginária de grande impacto
literário e é o pretexto para um romance que, tendo como
referência histórica as tensões entre mundos culturais
do século XVI, faz pensar nas feridas abertas em nosso
mundo contemporâneo. É nelas que o leitor é levado
a refletir ao percorrer as quatro grandes seções em que
o autor divide seu livro, e que Maalouf intitula o
livro de Granada; o livro de Fez; o livro do Cairo e
o livro de Roma, em alusão aos quatro mundos em
que a vida de Hassan al-Wazzan/Leão o Africano,
sucessivamente, se enraíza e se desenraiza.
Ao final do livro,
Maalouf põe na boca de seu personagem suas próprias
convicções e experiências, ao fazê-lo dirigir-se assim a
seu filho, numa espécie de posfácio ao livro:
"Brancos minaretes
de Gamarth, nobres ruínas de Cartago, é à sua sombra
que me espreita o esquecimento, é em sua direção que
minha vida segue à deriva, depois de tantos
naufrágios. O saque de Roma depois do castigo do
Cairo, o fogo de Tombuctu depois da queda de
Granada: será a desgraça que me chama ou serei
eu quem chama a desgraça?”
“ Uma vez mais, meu
filho, sou levado por esse mar, testemunha de todas
as minhas errâncias, e que agora te escolta em
direção a teu primeiro exílio. Em Roma, eras
‘o filho do Africano’; na África, serás ’o filho do
rouni’. Onde quer que estejas, muito quererão
esquadrinhar tua pele e tuas orações. Cuida-te
de não adular seus instintos, meu filho, cuida-te
para que não te curves diante da multidão!
Muçulmano, judeu ou cristão, é preciso que te
aceitem pelo que és, ou te perderão. Quando o
espírito dos homens te pareça estreito, dize a ti
mesmo que a terra de Deus é vasta, e vastos são Suas
mãos e Seu coração. Não hesita nunca em afastar-te,
para além de todos os mares, de todas as fronteiras,
de todas as pátrias, de todas as crenças.”
“Quanto a mim, eu já
cheguei ao final de meu périplo, e não tenho outro
desejo senão o de viver, em meio aos meus, jornadas
longas e pacíficas. E de ser, entre todos os
que amo, o primeiro a partir. Para este lugar
derradeiro onde ninguém é estrangeiro face à face
com o criador.”
(p. 348).
No livro, há uma única alusão à
epilepsia, tão marginal à trama do romance quanto
expressiva quanto ao lugar da doença no imaginário e nas
práticas sociais. Nela o autor se refere às falsas
crises epiléticas dos mendigos da Praça dos
Prodígios, como seu amigo Haroum chamava a praça de
Fez, onde os dois meninos aprenderam a ler o
mundo:
“’Hoje é sexta
feira, a escola está fechada, mas as ruas estão
abertas e os jardins também. Pega um pedaço de pão e
uma banana e, depois, encontra comigo no final da
rua ladeada de árvores.’”
“Naqueles dias, só
Deus sabe o número de nossas caminhadas. Muitas
vezes, começávamos o passeio na Praça dos Prodígios.
Não sei se este era, de fato, seu nome, mas era
assim que Haroum a chamava. Ali, não havia
para nós nada a comprar, nada a colher, nada a
comer. Mas havia muito a olhar, muito a
absorver, muito a escutar.”
“Em
primeiro lugar, os falsos enfermos. Alguns fingiam
ser vítimas do grande mal, seguravam suas cabeças
com as duas mãos, agitavam-nas com força, deixavam
pendentes lábios e mandíbulas, depois caíam e se
debatiam pelo chão com tanta perícia que nunca se
arranhavam sequer, e nunca derrubavam a gamela que
tinham perto de si para receber as esmolas.
Outros fingiam ter cálculos, e gemiam sem parar,
fingindo dores atrozes, a menos que os únicos
espectadores fossemos Haroum e eu. Outros
ainda expunham aos olhos dos passantes feridas e
pústulas. Eu, bem depressa, virava de costas,
pois haviam me dito que era suficiente fixar nelas
os olhos para ser contagiado.”
(p. 113)
Se, por um lado, o livro como um todo
permite a seus leitores descobrir a complexa história do
século XVI através da vida de Hassan al-Wazzan,
muçulmano, “circuncidado pelas mãos de um barbeiro e
batizado pelas mãos de um papa” (p. 9) e
transformado em João-Leão de Médicis, por outro, a
discreta menção à epilepsia revela o lugar do simulacro
da doença no circo de horrores da cidade, evita chamá-la
por seu nome ao utilizar o eufemismo grande mal
pelo qual era conhecida e descreve suas manifestações
características, e seu poder de despertar o medo e a
piedade dos passantes, como parte da pantomima dos
falsos enfermos que mendigavam em Fez.
Margarida de Souza Neves
Coordenadora da equipe de pesquisa
Junho de 2007 |
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GUIMARÃES ROSA, João. Grande Sertão:
Veredas. (19ª edição). Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2001. (624 pps. Ilustrações de Poty nas
solapas da 1ª edição, retomadas nesta edição.) |
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Se vivo fosse, João Guimarães Rosa completaria 100
anos em junho de 2008. E o tempo, matéria e forma de
sua narrativa, sempre oferece surpresas em sua
escrita.
As mais de 600
páginas de seu livro Grande Sertão: Veredas,
publicado em 1956, reservam para o leitor uma
inesquecível aventura estética e lingüística. Pela
voz de Riobaldo, que ao longo da narrativa ganha os
cognomes de Tatarana, e de Urutú- Branco, os que
ousam adentrar este livro, que, como o Liso do
Sussuarão, é simultaneamente de impossível e de
ineludível transposição, se deparam com um universo
único de vida e de morte, pautado pelo medo de amar
e pela força avassaladora do amor; pelas crenças
gêmeas em Deus e no Demônio; pelos caminhos e
descaminhos físicos e simbólicos de um sertão
que está em toda parte; pela poesia mais pura
e pela dura tragédia de cada vereda. Porque,
como o autor não cessa de lembrar a seu leitor pelas
palavras de Riobaldo, viver é muito perigoso.
Guimarães Rosa era médico, formado pela Faculdade de
Medicina da, então, Universidade de Minas Gerais. E,
entre as muitas dimensões do homem humano
presentes em seu livro estão, também, a saúde e a
doença. Ainda que não seja mencionada por sua
designação clínica, há no multifacetado universo de
Grande Sertão: Veredas duas alusões
inconfundíveis à epilepsia do jagunço Zé Vital.
A primeira é a crise sofrida durante o cerco dos
hermógenes à Casa dos Tucanos, ocasião em que o
bando de Riobaldo e Diadorim ainda era chefiado por
Zé Bebelo, quando, depois da matança de companheiros
como o Acrísio, o Berósio, o Cajueiro, o Quim Pidão
e do massacre dos cavalos no curral, Zé Vital sofre
o acesso feioso , narrado com riqueza de
detalhes na anamnese e no diagnóstico rústico:
"A
resto, um Zé Vital deu ataque: o qual era um
acesso sacramentado de feioso, principiando
depois que ele se queixava de sentir o nariz
quente, ele mesmo já sabia a data – e daí
proclamava um grito de porco com frio, e
caia estatelado no chão, duro como um cano
de arma; mas atanazava batendo com os braços
e pernas, querendo às ânsias coisa ou
criatura em que se agarrar, o onde
esbugalhava os olhos, a boca espumada,
escumando. Se disse: _ ‘Isto é doença velha
pertencida, isto não é fato de guerra...’
Acesso que passava a estado meio semi-morto,
num vago _ pois deitaram o Zé Vital numa
canastra de couro." (p. 369)
A segunda crise de
Zé Vital ocorre quando o bando está arranchado na
Coruja, um retiro taperado, para os lados das
Veredas-Mortas, e sua inclusão na narrativa
parece ter a função de sublinhar o tempo parado,
rompido apenas pela monótona repetição do já vivido,
seja a crise do jagunço epilético, seja a morte
inglória de Gregoriano por picada de jararaca
traiçoeira, sejam as horas mortas do acampamento
onde os jagunços se recuperam das febres e esperam
melhores condições para seguir viagem sob as ordens
de um Zé Bebelo que sempre adia a retomada do
caminho:
"Só dizendo
que tínhamos de esperar mesmo ali, até que
os adoecidos sarassem. Assim em
impossibilidades. Tudo o que acontecia era a
má sorte. Não digo por um Zé Vital, que
tornava a dar ataque, dos de entortar a boca
escumante e se esbracejar e espernear com
madeira de braços-e-pernas que de quem
eram."
(p. 420)
Precipitada pela
tensão de um combate ou manifestada em tempos de
calmaria, a epilepsia se apresenta, também, entre os
jagunços da saga sertaneja narrada por Guimarães
Rosa.
Uma terceira alusão à epilepsia, mais sutil, aparece
no momento culminante do livro, quando o bando dos
Hermógenes se enfrenta na guerra final com os
comandados de Riobaldo, no campo de batalha da única
rua do arraial do Paredão.
Por sugestão de Diadorim, Riobaldo salta da
trincheira cavada na terra enlameada pela chuva da
véspera, e, depois de atravessar os quintais das
casas abandonadas, chega ao único sobrado do povoado
debaixo de uma saraivada de tiros, vê cair morto ao
seu lado, acertado na testa, Jiribibe, o
menino bom, sobe a escada-de-redor e
assume o posto de comando, postado nos janelões do
segundo andar da casa. De lá, tudo alcança com a
vista, atira e derruba a muitos com sua pontaria
certeira, e pensa no que não chegou a dizer a
Diadorim na véspera, de noite.
De sua atalaia no sobradão, Riobaldo viu e
reconheceu Hermógenes, homem que se desata,
no bando inimigo. Do lado de seus homens, viu
Diadorim a vir – do topo da rua, punhal em mão,
avançar – correndo amouco... Viu o diabo na
rua, no meio do redemunho. E viu
Diadorim cravar e sangrar o Hermógenes. E, de
repente, não vi[u] mais Diadorim.
A certeza da morte de Diadorim é mais forte que as
forças do Urutú-Branco, e Riobaldo trespassou.
Guimarães Rosa assim faz seu herói narrar o momento
em que voltou a si do desmaio:
“Conforme
conto. Como retornei, tarde depois,
mal sabendo de mim, e querendo emendar nó no
tempo, tateando com meus olhos, que ainda
restavam fechados. Ouvi os rogos do
menino Guirigó e do cego Borromeu,
esfregando meu peito e meus braços,
reconstituindo, no dizer, que eu tinha
estado sem acordo, dado ataque, mas que
não tivesse espumado nem babado.
Sobrenadei. E, daí, não sei bem, eu
estava recebendo socorro de outros – o
Jacaré, Pacamã-de-Presas, João Curiol e o
Acauã -: que molhavam minhas faces e minha
boca, lambi água. Eu despertei de todo
– como no instante em que o trovão não
acabou de rolar até o fundo, e se sabe que
caiu o raio...” (p.
612)
O menino Guirigó e
o cego Borromeu não apenas socorrem e reanimam
Riobaldo, mas o primeiro que lhe dizem é que ele
tinha dado ataque, sim, mas não tinha
espumado nem babado. Ou seja, ao contrário do
que sucedera com o jagunço Zé Vital, seu ataque
não era a manifestação de doença velha pertencida,
mas sim fato de guerra. Nonada...
Margarida de Souza
Neves
Coordenadora da equipe de pesquisa
Fevereiro de 2008. |
NASSAR, Raduan. Lavoura
Arcaica. São Paulo: Companhia das Letras, 2006
(3a.ed.) |
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Filho de pais libaneses, Raduan Nassar é paulista de
Pindorama.
Formou-se em
filosofia em 1963 e após um período de viagens à
Europa e ao Líbano, funda, juntamente com seus
irmãos, o Jornal de Bairro onde
permanece escrevendo até 1974. Publicou nesse
periódico os contos ”Menina a Caminho” e “Aí
pelas três da tarde “ (1972). Este último conto
poderá, também, ser encontrado no jornal
Folha de São Paulo do dia 21 de janeiro de 1989.
Nassar publicou
somente dois livros, ambos premiados.
Sua primeira obra
foi Lavoura Arcaica, editada pela José
Olympio em 1973, que ganhou os prêmios Coelho Neto,
da Academia Brasileira de Letras e Jabuti, da Câmara
Brasileira do Livro. Foi, também, traduzida para o
espanhol e para o francês, publicadas,
respectivamente, pela Alfaguara (1982) e
pela Gallimard (1982).
O outro livro de
Nassar, Um Copo de Cólera” (1978), recebeu
o prêmio de Ficção Revelação de autor da
Academia Paulista de Críticos de Arte.
Desde então, não
escreveu mais, apesar dos inúmeros apelos. Optou
pela vida rural, e vive numa fazenda do interior de
São Paulo, dedicado à avicultura.
O livro
Lavoura Arcaica é composto de duas partes: A
partida e O retorno.
Na primeira parte
o autor relata, numa linguagem muito particular e
sempre elegante, as lembranças e os conflitos
pessoais vividos por André, principal protagonista
do livro, filho rebelde que abandonara sua numerosa
família rural, não só porque se sentia asfixiado por
sua estrutura patriarcal, pela rigidez moral de
caráter religioso e bíblico. Envergonhava-se,
também, com a descoberta de ser um epilético,
mas - e principalmente - porque se percebia
incapaz de controlar sua paixão pela irmã,
Ana.
Pedro seu irmão
mais velho, respondendo ao apelo da mãe, sai em
busca de André. Encontra-o numa pensão,
atordoado por suas memórias e pelo excesso de vinho.
Consegue, entretanto, convencê-lo a voltar para a
família, para os rituais das refeições diárias,
sempre presididas pela figura autoritária do pai.
Mas o retorno
de André ao lar vai tornar visível a precariedade da
união familiar. Lula seu irmão caçula, lhe confessa
sua infelicidade e a intenção de, também, querer
abandonar a fazenda. Ao mesmo tempo uma aparente paz
parece reinar no carinhoso acolhimento dado a André,
na alegria de todos com a organização da festa de
boas vindas.
Entretanto essa
comemoração será marcada pela tragédia. O pai
ao perceber o amor incestuoso existente entre os
irmãos acabará matando sua filha, Ana.
O narrador revela
as tragédias do livro de uma maneira muito
particular, quase silenciosa, sempre por meias
palavras, pelo não dito. Entretanto coloca
explicitamente o seu sofrimento, a tragédia que,
para ele, significou a descoberta de ter epilepsia.
Na passagem em que
seu irmão Pedro o visita na pensão e tenta
convencê-lo a voltar à casa paterna , André rompe o
seu resistente silêncio com as seguintes
palavras:
“...eu sou um epiléptico, fui
explodindo, convulsionado mais do que nunca pelo
fluxo violento que me corria o sangue “um
epiléptico” eu berrava e soluçava dentro de mim,
sabendo que atirava numa suprema aventura ao
chão, descarnando as palmas, o jarro da minha
velha identidade elaborado com o barro das
minhas próprias mãos,e me lançando nesse chão de
cacos, caído de boca num acesso louco eu fui
gritando ‘você tem um irmão epiléptico, fique
sabendo, volte agora para casa e faça essa
revelação, volte agora e você verá que as portas
e janelas lá de casa hão de bater com essa
ventania ao se fecharem e que vocês, homens da
família,carregando a pesada caixa de ferramenta
do pai, circundarão por fora a casa
encapuçados,martelando e pregando com violência
as tábuas em cruz contra as folhas das janelas,
e que nossas irmãs de temperamento mediterrâneo
e vestidas de negro hão de correr esvoaçantes
pela casa em luto e será um coro de uivos (...)
elas hão de amontoar-se num só canto e você
grite cada vez mais alto ”nosso irmão é um
epilético, um convulso, um possesso” e conte
também que escolhi um quarto de pensão pros meus
acessos e diga sempre “nós convivemos com ele e
não sabíamos, sequer suspeitamos alguma vez” e
vocês podem gritar num tempo só ”ele nos
enganou” (...) “é triste que ele tenha o nosso
sangue, uma peste maldita tomou conta dele” e
grite ainda ”que desgraça se abateu sobre a
nossa casa” e pergunte com furor mas como quem
puxa um terço ”o que faz dele um diferente?” e
você ouvira um coro (...) ”traz o demônio no
corpo” (...) ”traz o demônio no corpo”...
(pp. 39 - 40)
A desesperada confissão de André de
ter-se descoberto como um epilético, como
se denomina, parecia significar, para ele, a
percepção da perda de uma determinada visão de si
mesmo, de uma identidade que havia construído ao
longo da sua vida e se reconhecer, a partir de
então, como a vergonha da família porque seria um
homem que trazia no corpo, através da doença, o
próprio demônio, capaz de contaminar o sangue
da sua família.
O personagem de André ao se
identificar como um epilético confunde-se com
a própria doença. Esta aparece no texto
narrativamente associada às idéias de desgraça, de
luto, de vergonha, de peste, de demonização, de
repulsa e isolamento.
Encontramos ainda, no livro, mais uma
referência à epilepsia quando André, mergulhado nas
suas reflexões, afirma para si mesmo:
“...era eu o irmão acometido, eu, o irmão
exasperado, eu, o irmão de cheiro virulento, eu,
que tinha a baba derramada do demo” ..
(p. 108)
“...eu, o epiléptico, o possuído, o tomado, eu,
o faminto, arrolando na minha fala convulsa a
alma de uma chama, um pano de Verônica e um
espirro de tanta lama, misturando no caldo deste
fluxo o nome pervertido de Ana”...
(p. 110)
O texto aponta, novamente, para a
representação da epilepsia como uma doença asquerosa
e demoníaca. Mas propõe, também, a idéia de
contaminação, de atração maligna.
A percepção de André da epilepsia,
contruída por Nassar, como sendo uma possessão
demoníaca pode ser considerada um elemento, um fio
de uma história que se tece na tradição cristã.
Lavoura Arcaica parece sugerir uma versão
invertida da parábola do filho pródigo.
Heloisa Serzedello Correa
Pesquisadora
Fevereiro de 2008. |
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